terça-feira, 17 de julho de 2018

Tainha lanhada



Arte: pedro Lobo

João Cândido foi o maior herói brasileiro do século XX. Comandou a revolta dos marinheiros contra a barbárie da oficialidade branca e racista. Alcy Cheuiche acaba de publicar um belo livro sobre o assunto: “João Cândido, O Almirante Negro”. Já no começo, a descrição da cena em que o marujo Marcelino recebe 250 chibatas no lombo é dantesca: “Terminada a leitura do boletim, dois marinheiros tiraram as algemas e a parte superior do uniforme branco de Marcelino. Depois, sem violência, o suspenderam ao pé de carneiro, ferro que se prende à balaustrada do navio. Centenas de olhos acompanharam cada movimento. O sol já brilhava sobre as águas azuladas da baía. Um ruflar de tambores anunciou o início do castigo. Alípio aproximou-se, nu da cintura para cima, um orangotango mais humano que animal. João Cândido tentou atrair seu olhar, mas o chibateiro parecia hipnotizado”.

O carrasco estava vidrado nas costas da sua vítima. Cheuiche prossegue: “Girou o gato de nove caudas sobre a cabeça do marinheiro e aplicou-lhe a primeira chibatada. “Uma!”. Marcelino chegou a perder o fôlego, tamanha a dor que sentiu. Um murmúrio de protesto percorreu a fileira dos marujos, abafados pelo som dos tambores”. A chibata tinha nove tiras de couro. Havia a bordo dos mais modernos navios da Marinha brasileira os chibateiros, profissionais dos castigos corporais. Diz Cheiuche: “Após a centésima chibatada, nos braços do seu anjo da guarda, o marinheiro de segunda classe Marcelino Rodrigues Menezes perdeu completamente a consciência”. O suplício continuou. Até completar 250 lambadas, “dez vezes mais do que permitia a Marinha de Guerra”, limite que nenhum comandante, por mais insensível e cruel, jamais ousava ultrapassar. Batista das Neves o fez. Pagou com a sua vida ao retornar de um elegante jantar à francesa.*

O deputado José Carlos de Carvalho visitou os encouraçados São Paulo e Minas Gerais como negociador. Fez esta descrição: “Mandaram vir à minha presença uma praça que tinha sido castigada com a chibata. Examinei essa praça e trouxe-a comigo para terra, para ser recolhida ao Hospital da Marinha. Sr. Presidente, as costas desse marinheiro assemelhavam-se a uma tainha lanhada para ser salgada”. Esse era o Brasil de 1910. A imprensa, curiosamente, podia ser menos conservadora que a de hoje. Colocou-se ao lado dos insurretos e apelidou João Cândido de “Almirante Negro”. As páginas de livros como os de Edmar Morel, Mário Maestri e Alcy Cheuiche provocam na gente ondas de calor. Impossível não ficar com ódio retrospectivo desses carniceiros engalanados.

João Cândido ouvira a história da revolta dos marinheiros do encouraçado Potemkin. Marinheiros russos foram condenados ao fuzilamento por se recusarem a comer carne podre. O médico do navio, chamado para analisar a carne, protegeu o rosto com um lenço e fez o serviço. Liberou o consumo, infestada de larvas. Os marinheiros recusaram-se a comer. Doze foram condenados. Revoltaram-se. Mataram e jogaram ao mar o médico e o comandante.

Juremir Machado da Silva: juremir@correiodopovo.com.br


*João Batista das Neves, foto acima, estava no jantar oferecido a ele pela oficialidade do cruzador francês Douguay-Trouin, ancorado na baía da Guanabara na noite de 22 de novembro de 1910, quando resolve retornar, na companhia do então 2º tenente na Marinha, Armando Figueira Trompowsky de Almeida mais cedo ao Encouraçado Minas Gerais. Ali encontrou o navio revoltado e, num ato misto de fúria e missão militar, reagiu ferindo um marinheiro e sendo trucidado pelos demais.

Em 21 de Novembro de 1910, capitão-de-mar-e-guerra desde 1904, Batista das Neves foi o comandante do Encouraçado Minas Gerais que ordenou que o marinheiro Marcelino Menezes recebesse a punição de 250 chibatadas por ter ferido um cabo que delatou Marcelino por ele ter trazido cachaça para dentro do navio, o que era proibido a marinheiros. Na época era permitido aos oficiais beberem bebida alcoólica a bordo; aos marinheiros, não. A punição pelo código disciplinar, entretanto era limitada a 25 chibatadas, o que não foi respeitado pelo militar. 

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