Arte: pedro Lobo
João Cândido foi o maior herói
brasileiro do século XX. Comandou a revolta dos marinheiros contra a barbárie
da oficialidade branca e racista. Alcy Cheuiche acaba de publicar um belo livro
sobre o assunto: “João Cândido, O Almirante Negro”. Já no começo, a descrição
da cena em que o marujo Marcelino recebe 250 chibatas no lombo é dantesca: “Terminada
a leitura do boletim, dois marinheiros tiraram as algemas e a parte superior do
uniforme branco de Marcelino. Depois, sem violência, o suspenderam ao pé de
carneiro, ferro que se prende à balaustrada do navio. Centenas de olhos
acompanharam cada movimento. O sol já brilhava sobre as águas azuladas da baía.
Um ruflar de tambores anunciou o início do castigo. Alípio aproximou-se, nu da
cintura para cima, um orangotango mais humano que animal. João Cândido tentou
atrair seu olhar, mas o chibateiro parecia hipnotizado”.
O carrasco estava vidrado nas costas
da sua vítima. Cheuiche prossegue: “Girou o gato de nove caudas sobre a cabeça
do marinheiro e aplicou-lhe a primeira chibatada. “Uma!”. Marcelino chegou a
perder o fôlego, tamanha a dor que sentiu. Um murmúrio de protesto percorreu a
fileira dos marujos, abafados pelo som dos tambores”. A chibata tinha nove
tiras de couro. Havia a bordo dos mais modernos navios da Marinha brasileira os
chibateiros, profissionais dos castigos corporais. Diz Cheiuche: “Após a
centésima chibatada, nos braços do seu anjo da guarda, o marinheiro de segunda
classe Marcelino Rodrigues Menezes perdeu completamente a consciência”. O
suplício continuou. Até completar 250 lambadas, “dez vezes mais do que permitia
a Marinha de Guerra”, limite que nenhum comandante, por mais insensível e
cruel, jamais ousava ultrapassar. Batista das Neves o fez. Pagou com a sua vida
ao retornar de um elegante jantar à francesa.*
O deputado José Carlos de Carvalho
visitou os encouraçados São Paulo e Minas Gerais como negociador. Fez esta
descrição: “Mandaram vir à minha presença uma praça que tinha sido castigada
com a chibata. Examinei essa praça e trouxe-a comigo para terra, para ser
recolhida ao Hospital da Marinha. Sr. Presidente, as costas desse marinheiro
assemelhavam-se a uma tainha lanhada para ser salgada”. Esse era o Brasil de 1910. A imprensa,
curiosamente, podia ser menos conservadora que a de hoje. Colocou-se ao lado
dos insurretos e apelidou João Cândido de “Almirante Negro”. As páginas de
livros como os de Edmar Morel, Mário Maestri e Alcy Cheuiche provocam na gente
ondas de calor. Impossível não ficar com ódio retrospectivo desses carniceiros
engalanados.
João Cândido ouvira a história da
revolta dos marinheiros do encouraçado Potemkin. Marinheiros russos foram
condenados ao fuzilamento por se recusarem a comer carne podre. O médico do
navio, chamado para analisar a carne, protegeu o rosto com um lenço e fez o
serviço. Liberou o consumo, infestada de larvas. Os marinheiros recusaram-se a
comer. Doze foram condenados. Revoltaram-se. Mataram e jogaram ao mar o médico
e o comandante.
Juremir Machado da
Silva: juremir@correiodopovo.com.br
*João Batista das Neves, foto
acima, estava no jantar oferecido a ele pela oficialidade do cruzador francês
Douguay-Trouin, ancorado na baía da Guanabara na noite de 22 de novembro de
1910, quando resolve retornar, na companhia do então 2º tenente na Marinha, Armando
Figueira Trompowsky de Almeida mais cedo ao Encouraçado Minas Gerais. Ali
encontrou o navio revoltado e, num ato misto de fúria e missão militar, reagiu
ferindo um marinheiro e sendo trucidado pelos demais.
Em 21 de Novembro de 1910,
capitão-de-mar-e-guerra desde 1904, Batista das Neves foi o comandante do
Encouraçado Minas Gerais que ordenou que o marinheiro Marcelino Menezes
recebesse a punição de 250 chibatadas por ter ferido um cabo que delatou
Marcelino por ele ter trazido cachaça para dentro do navio, o que era proibido
a marinheiros. Na época era permitido aos oficiais beberem bebida alcoólica a
bordo; aos marinheiros, não. A punição pelo código disciplinar, entretanto era
limitada a 25 chibatadas, o que não foi respeitado pelo militar.
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