Chico Feio era feio. Mas tinha muita
beleza. Uma das pessoas mais belas que eu já conheci nesta minha já nem tão
curta vida. O Chico Feio era feio por fora, mas era bonito por dentro, pelos
seus entremeios. O xiru(1) não tinha cabelo, era “pelado”, como dizem os
correntinos(2), mas esbanjava simpatia. Um lado da cara do Chico era torto, mas
sua alma era reta, a mais aprumada que vi. Sim, era feio mesmo o Chico Feio. Era
desengonçado, vesgo, gago, manco, carregava muitas mazelas o meu querido amigo
Chico, mas era tão altivo e digno. Pelo menos assim eu o via. Um guri
solidário, parceiro, prestativo, gentil, de coração tão mole, recolhia todos os
cachorros e gatos perdidos, não sabia dizer uma palavra que magoasse alguém. Por
ser tão bom e límpido, por ser ingênuo, puro e infantil, era motivo de
chacotas, chistes e brincadeiras preconceituosas. O ser humano pode ser tão bom
e ao mesmo tempo pode ser tão mau. Eu via tudo aquilo e me entristecia. Depois abraçava
o Chico, comíamos juntos uns tijolinhos que ele adorava, e ríamos de qualquer
coisa, porque o Chico viera ao mundo para rir. Ele não se importava com sua
feiura.
Ah, o Chico Feio não merecia o
apelido que algum gaiato botou nele. Apesar de todas suas limitações,
trabalhava muito, ganhava dinheiro como changueiro(3), limpador de pátios,
carpia (4) lavouras de milho, de mandioca, era elogiado cozinheiro, reconhecido
treinador de cavalos de carreira(5), surpreendente trovador de improviso e
exímio assador de carne. Fazia qualquer serviço. Em tudo era bom, mas era
zoado, como dizem hoje, por ser diferente. Em nosso bolicho (6) não permitia
que o ofendessem. Havia um cliente metido a bonitão, filho de um chacareiro e
funcionário público. O pai morrera em serviço e deixara a aposentadoria para a
viúva, sua mãe, e o espertalhão nunca trabalhara, vivia bebendo pelos
restaurantes e clubes, todo arrumadinho, jogando, namorando e se esbaldando
como um bon vivant. Uma noite, achei
que havia passado dos limites e por detrás do balcão disse-lhe que se calasse,
que o Chico era uma pessoa digna e que não merecia ser humilhada. Nunca mais
apareceu lá, ficou ofendido, mas também não fez falta.
(...)
Algum tempo depois, num fim de ano
que voltei à Vila Rica, me contaram que o Chico havia morrido de infarto.
Morreu solteiro, disseram que nenhuma moça quis casar com ele, apesar de seu
coração doce. Imperou a lei da beleza física, do padrão estético e da cultura
tradicional. Fiquei chateado e triste e decidi escrever esta crônica em memória
do Chico Feio, para que se faça uma reflexão sobre a beleza, a bondade e o que
vale a pena na terra. Achei que seria uma atitude bonita.
Paulo Mendes em
Campereada(7) – Correio do Povo
Glossário:
(1) Xiru → índio velho, negro velho, gaúcho velho. Variação
de chiru.
(2) Correntino → habitante da província argentina de
Corrientes.
(3) Changueiro → prestador de pequenos serviços, biscateiro,
carregador.
(4) Carpir → capinar.
(5) Cavalo de carreira → cavalo de corrida.
(6) Bolicho → o mesmo que bodega. Pequeno armazém de secos e
molhados.
(7) Campereada → ato de camperear. Cavalgar pelo campo para
ver o gado.
(Do Dicionário
Gaúcho, de Alberto Juvenal de Oliveira)
Nenhum comentário:
Postar um comentário