sábado, 25 de agosto de 2018

A beleza do Chico Feio



Chico Feio era feio. Mas tinha muita beleza. Uma das pessoas mais belas que eu já conheci nesta minha já nem tão curta vida. O Chico Feio era feio por fora, mas era bonito por dentro, pelos seus entremeios. O xiru(1) não tinha cabelo, era “pelado”, como dizem os correntinos(2), mas esbanjava simpatia. Um lado da cara do Chico era torto, mas sua alma era reta, a mais aprumada que vi. Sim, era feio mesmo o Chico Feio. Era desengonçado, vesgo, gago, manco, carregava muitas mazelas o meu querido amigo Chico, mas era tão altivo e digno. Pelo menos assim eu o via. Um guri solidário, parceiro, prestativo, gentil, de coração tão mole, recolhia todos os cachorros e gatos perdidos, não sabia dizer uma palavra que magoasse alguém. Por ser tão bom e límpido, por ser ingênuo, puro e infantil, era motivo de chacotas, chistes e brincadeiras preconceituosas. O ser humano pode ser tão bom e ao mesmo tempo pode ser tão mau. Eu via tudo aquilo e me entristecia. Depois abraçava o Chico, comíamos juntos uns tijolinhos que ele adorava, e ríamos de qualquer coisa, porque o Chico viera ao mundo para rir. Ele não se importava com sua feiura.

Ah, o Chico Feio não merecia o apelido que algum gaiato botou nele. Apesar de todas suas limitações, trabalhava muito, ganhava dinheiro como changueiro(3), limpador de pátios, carpia (4) lavouras de milho, de mandioca, era elogiado cozinheiro, reconhecido treinador de cavalos de carreira(5), surpreendente trovador de improviso e exímio assador de carne. Fazia qualquer serviço. Em tudo era bom, mas era zoado, como dizem hoje, por ser diferente. Em nosso bolicho (6) não permitia que o ofendessem. Havia um cliente metido a bonitão, filho de um chacareiro e funcionário público. O pai morrera em serviço e deixara a aposentadoria para a viúva, sua mãe, e o espertalhão nunca trabalhara, vivia bebendo pelos restaurantes e clubes, todo arrumadinho, jogando, namorando e se esbaldando como um bon vivant. Uma noite, achei que havia passado dos limites e por detrás do balcão disse-lhe que se calasse, que o Chico era uma pessoa digna e que não merecia ser humilhada. Nunca mais apareceu lá, ficou ofendido, mas também não fez falta.

(...)

Algum tempo depois, num fim de ano que voltei à Vila Rica, me contaram que o Chico havia morrido de infarto. Morreu solteiro, disseram que nenhuma moça quis casar com ele, apesar de seu coração doce. Imperou a lei da beleza física, do padrão estético e da cultura tradicional. Fiquei chateado e triste e decidi escrever esta crônica em memória do Chico Feio, para que se faça uma reflexão sobre a beleza, a bondade e o que vale a pena na terra. Achei que seria uma atitude bonita.

Paulo Mendes em Campereada(7) – Correio do Povo

Glossário:

(1) Xiru → índio velho, negro velho, gaúcho velho. Variação de chiru.

(2) Correntino → habitante da província argentina de Corrientes.

(3) Changueiro → prestador de pequenos serviços, biscateiro, carregador.

(4) Carpir → capinar.

(5) Cavalo de carreira → cavalo de corrida.

(6) Bolicho → o mesmo que bodega. Pequeno armazém de secos e molhados.

(7) Campereada → ato de camperear. Cavalgar pelo campo para ver o gado.

(Do Dicionário Gaúcho, de Alberto Juvenal de Oliveira)



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