No dia 25 de abril de 1974, eu estava
em Lisboa, no meio dos tanques e dos soldados que acabavam de derrubar o regime
salazarista. As tropas tinham ocupado a cidade de madrugada e ainda havia
importantes redutos inimigos a dominar, mas, desde as nove horas da manhã, o
povo já saía às ruas para comemorar. De repente, no Rossio, alguém me espetou
um cravo vermelho à lapela.
Olhei em volta e só vi vermelho. Os
cravos surgiam aos milhares, do nada ou das mãos de senhoras de lenço preto na
cabeça, e coloriam o cinza dos casacos. Os soldados não protestavam quando eles
eram enfiados em suas baionetas. Era a Revolução dos Cravos. Mais do que tiros,
as flores libertavam Portugal de uma ditadura de 48 anos.
Morador de Lisboa desde janeiro de 1973, a trabalho numa
revista, eu deveria ter me emocionado menos e sido mais objetivo naquele dia.
Para tentar descobrir, por exemplo, como começara e de onde saíam aqueles
cravos. Mas deixei passar e, só agora, 42 anos depois, alguém me sugeriu uma
explicação.
Um restaurante do Chiado fazia
aniversário. Na véspera, uma funcionária, Celeste Caeiro, fora instruída a
levar flores para serem presenteadas aos clientes. Mas ao chegar ao trabalho
pela manhã com uma braçada de cravos vermelhos, o patrão lhe disse que, com
aquela agitação, não iriam abrir. Que ela fosse embora para casa e levasse os
cravos. Celeste obedeceu. Na rua do Carmo, um tanque passou por ela e um
soldado lhe pediu uma flor. Os outros soldados e civis ali presentes também
ganharam cravos. Num instante, os estoques dos floristas acabaram, os jardins
públicos fizeram a sua parte e Lisboa foi tomada pelos cravos.
Durante anos, guardei o meu dentro de
um livro. Mas o livro se perdeu em alguma mudança de cidade, país ou
continente, e fiquei sem o meu cravo do 25 de Abril.
Celeste Caeiro também
conhecida por “Celeste dos Cravos”
(Imagem: Reprodução
Ao Pé da Raia)
(Texto do livro “A
arte de bem querer”, de Ruy Castro)
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