sábado, 18 de agosto de 2018

Plantar um bosque

Lya Luft


Acaba de sair um novo livro meu, em que falo de questões sociais, miséria, riquezas mal empregadas, educação insuficiente, corrupção ou confusão com novos modos de viver. Mas, por achar que também precisamos de um pouco de beleza e graça, ou seremos engenheiros do mau humor, falarei no Bosque: esse, sim, eu quero partilhar com meus leitores.

O Bosque existe: é um dos meus lugares mágicos, onde minha imaginação anda de mãos dadas com a realidade. Ainda somos poucos moradores nesse condomínio na serra, mas algumas casas novas vão aparecendo entre as árvores. A nossa, a menor de todas, foi feita como a gente queria: telhado pontudo, portas e venezianas no que chamo de azul-grego, varandona, lareira e aconchego, grandes vidraças trazendo o bosque para dentro dos quartos.

Eu a batizei de Casa da Bruxa Boa, e mandei botar isso numa placa ao lado do acesso para o carro. E, cada vez que seus telhados e venezianas azuis aparecem na curva da ruazinha quando chegamos, ainda me espanta que seja nossa. Nela acontecem coisas especiais. Como quando meu marido resolveu tocar um Mozart em alto e bom som no meio de uma manhã de domingo. Sem tucanos, nem bugios, nem uma raposinha, nossos eventuais companheiros. Éramos as árvores e nós: troncos subindo com dificuldade como velhinhas encurvadas ou amantes sensuais. Comentei que certamente era a primeira vez que aquela mata tão antiga escutava música. Meu marido concordou, balançando a cabeça. Nem lhe ocorreu dizer que árvores não escutam. Pois quem me diz, que árvores sendo vivas, não sentem nada, nem ouvem, nem enxergam − ainda que do jeito delas, que não entendemos ainda? Quem me diz que, compadecidas com esses atrapalhados humanos, não nos concedem de propósito essa renovadora paz que recuperamos depois do grande cansaço de quem chega da cidade arrastando deveres, compromissos, fracassos e desilusões? Quem me garante que entre os troncos não se escondem seres de fábula, que nos espiam de noite quando tudo parece dormir, mas aqui e ali alguma coisa se move, rápida? Algo vivo se esgueira, corre com pezinhos como de minúsculos esquilos no telhado − mas não são esquilos, e macacos não andam por aí de noite. Pois eu, em tantas noites quietas, escuto neste mato, neste telhado e neste jardim muitas coisas insólitas: mesmo sem nome, nem rosto, elas são reais. Batem asas, sussurram, dão risadinhas, divertindo-se com minha incapacidade de enxergar melhor o que não cabe em explicações.

Essas franjas do perceptível permitem que a gente cumpra o cotidiano de trabalhos e correrias, amores a cuidar, contas a pagar, o dinheiro escasso, a burocracia implacável e kafkiana, o carro que precisa ir para a oficina e a eterna lista de supermercado ao lado do computador, tudo isso e muito mais, mas sem perder a graça.

E, quando a perdemos − ou ela nos escapa − a lembrança daqueles tons de verde, um colorido fugaz na sombra entre as raízes, os pássaros estranhos que vem comer frutinhas, tudo isso a traz de volta. Como as vozes das crianças nos balanços quando nos visitam, seu olhar sonado, quando descem a escada ainda em suas roupas de dormir, e vem para nosso colo. Toda a graça, toda a delicadeza, o consolo e o assombro deste mundo tantas vezes frio e cruel retornam, e nos fazem companhia por mais cansado, aborrecido ou desanimado que a gente esteja − porque às vezes a gente também fica assim.

E, quando resolvi transcrever nesta coluna parte do meu texto sobre o Bosque, pensei que cada um de nós pudesse curtir essa experiência, na paisagem da janela, ainda que uma frestinha de verde entre os edifícios; numa caminhada pela praça ou parque; numa viagem de ônibus; ou, melhor ainda, inventar o seu. Plantar um bosque na alma, e curtir a sombra, o vento, a chuva, as crianças, o sossego. Não precisam ser reais. Eu até acho que a realidade não existe: existe o que nós criamos, sentimos, vemos ou simplesmente imaginamos. E é isso que torna a vida suportável. Ou especial.

Revista Veja, abril de 2011


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