Lya Luft
Acaba de sair um novo livro meu, em
que falo de questões sociais, miséria, riquezas mal empregadas, educação
insuficiente, corrupção ou confusão com novos modos de viver. Mas, por achar
que também precisamos de um pouco de beleza e graça, ou seremos engenheiros do
mau humor, falarei no Bosque: esse, sim, eu quero partilhar com meus leitores.
O Bosque existe: é um dos meus
lugares mágicos, onde minha imaginação anda de mãos dadas com a realidade.
Ainda somos poucos moradores nesse condomínio na serra, mas algumas casas novas
vão aparecendo entre as árvores. A nossa, a menor de todas, foi feita como a
gente queria: telhado pontudo, portas e venezianas no que chamo de azul-grego, varandona,
lareira e aconchego, grandes vidraças trazendo o bosque para dentro dos
quartos.
Eu a batizei de Casa da Bruxa Boa, e
mandei botar isso numa placa ao lado do acesso para o carro. E, cada vez que
seus telhados e venezianas azuis aparecem na curva da ruazinha quando chegamos,
ainda me espanta que seja nossa. Nela acontecem coisas especiais. Como quando
meu marido resolveu tocar um Mozart em alto e bom som no meio de uma manhã de
domingo. Sem tucanos, nem bugios, nem uma raposinha, nossos eventuais
companheiros. Éramos as árvores e nós: troncos subindo com dificuldade como
velhinhas encurvadas ou amantes sensuais. Comentei que certamente era a
primeira vez que aquela mata tão antiga escutava música. Meu marido concordou,
balançando a cabeça. Nem lhe ocorreu dizer que árvores não escutam. Pois quem
me diz, que árvores sendo vivas, não sentem nada, nem ouvem, nem enxergam −
ainda que do jeito delas, que não entendemos ainda? Quem me diz que,
compadecidas com esses atrapalhados humanos, não nos concedem de propósito essa
renovadora paz que recuperamos depois do grande cansaço de quem chega da cidade
arrastando deveres, compromissos, fracassos e desilusões? Quem me garante que
entre os troncos não se escondem seres de fábula, que nos espiam de noite
quando tudo parece dormir, mas aqui e ali alguma coisa se move, rápida? Algo
vivo se esgueira, corre com pezinhos como de minúsculos esquilos no telhado −
mas não são esquilos, e macacos não andam por aí de noite. Pois eu, em tantas
noites quietas, escuto neste mato, neste telhado e neste jardim muitas coisas
insólitas: mesmo sem nome, nem rosto, elas são reais. Batem asas, sussurram,
dão risadinhas, divertindo-se com minha incapacidade de enxergar melhor o que
não cabe em explicações.
Essas franjas do perceptível permitem
que a gente cumpra o cotidiano de trabalhos e correrias, amores a cuidar,
contas a pagar, o dinheiro escasso, a burocracia implacável e kafkiana, o carro
que precisa ir para a oficina e a eterna lista de supermercado ao lado do
computador, tudo isso e muito mais, mas sem perder a graça.
E, quando a perdemos − ou ela nos
escapa − a lembrança daqueles tons de verde, um colorido fugaz na sombra entre
as raízes, os pássaros estranhos que vem comer frutinhas, tudo isso a traz de
volta. Como as vozes das crianças nos balanços quando nos visitam, seu olhar sonado,
quando descem a escada ainda em suas roupas de dormir, e vem para nosso colo.
Toda a graça, toda a delicadeza, o consolo e o assombro deste mundo tantas
vezes frio e cruel retornam, e nos fazem companhia por mais cansado, aborrecido
ou desanimado que a gente esteja − porque às vezes a gente também fica assim.
E, quando resolvi transcrever nesta
coluna parte do meu texto sobre o Bosque, pensei que cada um de nós pudesse
curtir essa experiência, na paisagem da janela, ainda que uma frestinha de
verde entre os edifícios; numa caminhada pela praça ou parque; numa viagem de ônibus;
ou, melhor ainda, inventar o seu. Plantar um bosque na alma, e curtir a sombra,
o vento, a chuva, as crianças, o sossego. Não precisam ser reais. Eu até acho
que a realidade não existe: existe o que nós criamos, sentimos, vemos ou
simplesmente imaginamos. E é isso que torna a vida suportável. Ou especial.
Revista Veja, abril
de 2011
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