terça-feira, 14 de agosto de 2018

Tiradentes: beato à força



Primeira biografia do alferes que virou “mártir da Inconfidência” traz revelações sobre o conspirador que delatou nove companheiros e se tornou místico

José Joaquim da Silva Xavier (1746-1792), o Tiradentes, líder da Inconfidência Mineira, foi elevado a símbolo da liberdade do Brasil. Embora não haja notícia de um retrato seu, tornou-se a imagem mais poderosa da República. Mas o monumento do “mártir da Inconfidência” começa a derreter para dar lugar ao homem real com “O Tiradentes, uma Biografia de José Joaquim da Silva Xavier”, do jornalista Lucas Figueiredo, lançada pela Companhia das Letras. Trata-se da primeira narrativa documentada sobre o inconfidente. Figueiredo vasculhou fontes raramente consultadas − cartas reais, inventários, manuscritos e processos −, além de ter examinado objetos e lugares por onde passou o biografado.

Figueiredo descobriu que Tiradentes não possuía biografia. A lacuna se explica pela dificuldade de recuperar fatos antes da Inconfidência. “A bibliografia disponível se resumia a dois tipos de livros: os que se preocupavam em cultuar o mito e os trabalhos acadêmicos”, diz à ISTOÉ. “Esses últimos, mesmo que alguns sejam excelentes, tratam da relação de Tiradentes com a conjuração Mineira. Mais de 200 anos após sua morte, ainda não havia um livro que contasse a trajetória desse incrível personagem.”

Na pesquisa, Figueiredo colheu informações inéditas sobre a Inconfidência, que ambicionava instaurar uma democracia à americana nas Minas Gerais espoliadas após cem anos de corrida do ouro, iniciada em 1697. Entre as revelações está a participação de uma mulher na trama: a fazendeira Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, excluída do rol de réus. Outra novidade está no papel do visconde de Barbacena, governador da capitania de Minas, que protegeu os rebeldes e só os prendeu quando foram denunciados pelo negociante e conspirador Joaquim Silvério dos Reis.

Ele também esclarece as atividades de Tiradentes como militar, dentista, minerador e empreendedor, e como ele liderou a conspiração ao pregar em público o ideário iluminista, algo que outros conjurados, como Tomás Antônio Gonzaga, desejavam discutir na surdina − e, por isso, entraram em conflito com Tiradentes. O livro relata a união tumultuada com Antônia Maria do Espírito Santo, 25 anos mais nova que ele, com quem teve uma filha, Joaquina.

Beato à força

Com base em depoimentos dados na prisão da Ilha das Cobras, onde permaneceu nos dois últimos anos de vida, Figueiredo retrata-o fragilizado, joguete dos frades franciscanos. “Ao contrário do que muitos dizem, Tiradentes não poupou todos os conjurados em seus depoimentos”, afirma. Submetido à tortura, delatou nove companheiros em troca do perdão que não ocorreu. Por não ser nobre nem religioso, foi o único condenado à forca por dona Maria I. Ela ordenou que a execução fosse um auto de fé exemplar. No Rio de Janeiro, na manhã de 21 de abril de 1792, Tiradentes foi conduzido da masmorra à forca, escoltado por padres e militares. No trajeto de dois quilômetros, o réu, fora de si, ora corria, ora era orientado a seguir uma “coreografia” em que imitava os Passos da Cruz e erguia o crucifixo com os olhos fixos. Figueiredo diz que os frades levaram à loucura. “O serviço espiritual que eles prestavam era uma lavagem cerebral que apagou a intensa flama rebelde de Tiradentes. Ele se tornou um ser dócil, subserviente e altamente místico.”

O legado de Tiradentes, segundo seu biógrafo, foi ter-se tornado “o amálgama de um sentimento de brasilidade”. Mesmo à força da manipulação, é sempre lembrado. “Não é à toa que, toda vez que o Brasil cai em crise, a figura de Tiradentes aparece”, afirma.” Pode reparar: recorremos a Tiradentes toda vez que tentamos cumprir a difícil tarefa de explicar o Brasil e os brasileiros.”


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