Primeira biografia do alferes que
virou “mártir da Inconfidência” traz revelações sobre o conspirador que delatou
nove companheiros e se tornou místico
José Joaquim da Silva Xavier
(1746-1792), o Tiradentes, líder da Inconfidência Mineira, foi elevado a
símbolo da liberdade do Brasil. Embora não haja notícia de um retrato seu,
tornou-se a imagem mais poderosa da República. Mas o monumento do “mártir da
Inconfidência” começa a derreter para dar lugar ao homem real com “O Tiradentes,
uma Biografia de José Joaquim da Silva Xavier”, do jornalista Lucas Figueiredo,
lançada pela Companhia das Letras. Trata-se da primeira narrativa documentada
sobre o inconfidente. Figueiredo vasculhou fontes raramente consultadas −
cartas reais, inventários, manuscritos e processos −, além de ter examinado
objetos e lugares por onde passou o biografado.
Figueiredo descobriu que
Tiradentes não possuía biografia. A lacuna se explica pela dificuldade de
recuperar fatos antes da Inconfidência. “A bibliografia disponível se resumia a
dois tipos de livros: os que se preocupavam em cultuar o mito e os trabalhos
acadêmicos”, diz à ISTOÉ. “Esses últimos, mesmo que alguns sejam excelentes,
tratam da relação de Tiradentes com a conjuração Mineira. Mais de 200 anos após
sua morte, ainda não havia um livro que contasse a trajetória desse incrível
personagem.”
Na pesquisa, Figueiredo colheu
informações inéditas sobre a Inconfidência, que ambicionava instaurar uma
democracia à americana nas Minas Gerais espoliadas após cem anos de corrida do
ouro, iniciada em 1697. Entre as revelações está a participação de uma mulher
na trama: a fazendeira Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, excluída do rol de
réus. Outra novidade está no papel do visconde de Barbacena, governador da
capitania de Minas, que protegeu os rebeldes e só os prendeu quando foram
denunciados pelo negociante e conspirador Joaquim Silvério dos Reis.
Ele também esclarece as
atividades de Tiradentes como militar, dentista, minerador e empreendedor, e
como ele liderou a conspiração ao pregar em público o ideário iluminista, algo
que outros conjurados, como Tomás Antônio Gonzaga, desejavam discutir na
surdina − e, por isso, entraram em conflito com Tiradentes. O livro relata a
união tumultuada com Antônia Maria do Espírito Santo, 25 anos mais nova que
ele, com quem teve uma filha, Joaquina.
Beato à força
Com base em depoimentos dados na
prisão da Ilha das Cobras, onde permaneceu nos dois últimos anos de vida,
Figueiredo retrata-o fragilizado, joguete dos frades franciscanos. “Ao
contrário do que muitos dizem, Tiradentes não poupou todos os conjurados em
seus depoimentos”, afirma. Submetido à tortura, delatou nove companheiros em
troca do perdão que não ocorreu. Por não ser nobre nem religioso, foi o único
condenado à forca por dona Maria I. Ela ordenou que a execução fosse um auto de
fé exemplar. No Rio de Janeiro, na manhã de 21 de abril de 1792, Tiradentes foi
conduzido da masmorra à forca, escoltado por padres e militares. No trajeto de
dois quilômetros, o réu, fora de si, ora corria, ora era orientado a seguir uma
“coreografia” em que imitava os Passos da Cruz e erguia o crucifixo com os
olhos fixos. Figueiredo diz que os frades levaram à loucura. “O serviço
espiritual que eles prestavam era uma lavagem cerebral que apagou a intensa
flama rebelde de Tiradentes. Ele se tornou um ser dócil, subserviente e
altamente místico.”
O legado de Tiradentes, segundo
seu biógrafo, foi ter-se tornado “o amálgama de um sentimento de brasilidade”.
Mesmo à força da manipulação, é sempre lembrado. “Não é à toa que, toda vez que
o Brasil cai em crise, a figura de Tiradentes aparece”, afirma.” Pode reparar:
recorremos a Tiradentes toda vez que tentamos cumprir a difícil tarefa de
explicar o Brasil e os brasileiros.”
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