De todas as artes a mais bela, a mais
expressiva, a mais difícil, é sem dúvida a arte da palavra.
De todas as mais se entretece e se
compõe. São as outras como ancilas [1] e ministras: ela soberana universal.
Da estatuária toma as
formas, da arquitetura imita a regrada estrutura de suas fábricas; da pintura
copia a cor e o debuxo dos seus quadros; da música aprende a variada sucessão
de seus compassos e melodias; e sobre todos estes predicados têm, mais do que
as outras artes, a vida, que anima os seus painéis, a paixão, que dá novo
esplendor às suas tintas, o movimento, que intima aos que a escutam e admiram,
o entusiasmo e a persuasão.
A estátua fala, mas fala como uma
interjeição, que apenas expressa um sentimento vago, indefinido, momentâneo.
A pintura fala, mas fala como uma
frase breve, em que a elipse houvera [2] suprimido boa parte dos elementos
essenciais.
O edifício fala, mas fala como uma
inscrição abreviada, que desperta a memória do passado, sem particularizar os
acontecimentos a que alude.
A música fala, mas fala apenas à
sensibilidade, sem que o entendimento a. possa claramente discernir.
Só a palavra nas artes, a que é
matéria prima, fala ao mesmo tempo à fantasia e à razão, ao sentimento e às
paixões. Só ela, Pigmalião; prodigioso, esculpe estátuas que vão saindo vivas e
animadas da pedra ou do madeiro, onde as delineia e arredonda o seu buril.
Só a palavra, mais inventiva do que
Zêuxis [3], sabe desenhar e colorir figuras e países, com que se ilude e engana
a vista intelectual. Só a palavra, mais audaz que os Ictinos [4] e os
Calícrates, traça, dispõe, exorna e arremessa aos ares monumentos mais nobres e
ideais que o Partenon de Atenas.
Só a palavra, mais comovedora e
persuasiva do que o plectro [5] dos Orfeus [6], encadeia à sua, lira mágica
estas feras humanas ou desumanas que se chamam homens, arrebatados e
enfurecidos nas mais truculentas alucinações.
Não pedem crescer, medrar,
divinizar-se as artes da forma, da proporção, da cor e da harmonia, quando o
imaginário tem de afeiçoar os ídolos de uma religião sinistra e humilhante, quando
o arquiteto há de erigir os templos de uma sombria divindade, quando o pintor
tem de ornar com os seus encaustos os paços de um sátrapa oriental, quando o
músico há-de ajustar as suas composições às pompas tradicionais de uma
civilização imobilizada pela servidão.
(Latino Coelho)
(José Maria Latino Coelho,
1825-1891, escritor português. In: Demóstenes, Oração da Coroa. 2ª edição.
Introdução, p. XVII).
[1] Ancila (latinismo) − serva.
[2] houvera por houvesse.
[3] Zêuxis − o mais célebre pintor da antiguidade, natural
da Heráclia.
[4] Ictino − arquiteto famoso de Atenas, do século de
Péricles; edificou o Partenon em Atenas.
[5] Plectro − instrumento com que se vibravam as cordas da
lira.
[6] Orfeu − filho de Calíope,
famoso tocador de lira; diz a lenda que, ao som da sua voz e da sua lira, os
rios suspendiam o seu curso, as feras se amansavam e o próprio inferno ficava
encantado.
Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.
Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.
José Maria Latino Coelho (Lisboa, 29
de Novembro de 1825
− Sintra, 29 de
Agosto de 1891),
mais conhecido por Latino Coelho, militar, escritor, jornalista e político
português, formado em Engenharia Militar. Seguiu a carreira das armas,
tendo atingido o posto de general de brigada do estado-maior de engenharia.
Seguindo um percurso político que o levaria do Partido Regenerador, pelo qual foi eleito
deputado, ao Partido Republicano Português, com
passagem por um governo do Partido Reformista, de que foi
fundador e ministro, a sua carreira política percorreu todo o arco partidário
da Monarquia Constitucional. Foi várias vezes eleito deputado, foi par do Reino
eleito e exerceu as funções de ministro da Marinha e de vogal do Conselho Geral
de Instrução Pública. Foi lente na Escola Politécnica de Lisboa e sócio
efetivo e secretário perpétuo da Academia Real das Ciências de
Lisboa. Como escritor, notabilizou-se com obras de foro histórico e
ensaístico.
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