quarta-feira, 12 de setembro de 2018

A arte da palavra


De todas as artes a mais bela, a mais expressiva, a mais di­fícil, é sem dúvida a arte da palavra.

De todas as mais se entre­tece e se compõe. São as outras como ancilas [1] e ministras: ela soberana universal.

Da estatuária toma as formas, da arquite­tura imita a regrada estrutura de suas fábricas; da pintura copia a cor e o debuxo dos seus quadros; da música aprende a variada sucessão de seus compassos e melodias; e sobre todos estes pre­dicados têm, mais do que as outras artes, a vida, que anima os seus painéis, a paixão, que dá novo esplendor às suas tintas, o mo­vimento, que intima aos que a escutam e admiram, o entusiasmo e a persuasão.

A estátua fala, mas fala como uma interjeição, que apenas expressa um sentimento vago, indefinido, momentâneo.

A pintura fala, mas fala como uma frase breve, em que a elipse houvera [2] suprimido boa parte dos elementos essenciais.

O edi­fício fala, mas fala como uma inscrição abreviada, que desperta a memória do passado, sem particularizar os acontecimentos a que alude.

A música fala, mas fala apenas à sensibilidade, sem que o entendimento a. possa claramente discernir.

Só a palavra nas artes, a que é matéria prima, fala ao mesmo tempo à fanta­sia e à razão, ao sentimento e às paixões. Só ela, Pigmalião; prodigioso, esculpe estátuas que vão saindo vivas e animadas da pedra ou do madeiro, onde as delineia e arredonda o seu buril.

Só a palavra, mais inventiva do que Zêuxis [3], sabe desenhar e colorir figuras e países, com que se ilude e engana a vista inte­lectual. Só a palavra, mais audaz que os Ictinos [4] e os Calícrates, traça, dispõe, exorna e arremessa aos ares monumentos mais nobres e ideais que o Partenon de Atenas.

Só a palavra, mais co­movedora e persuasiva do que o plectro [5] dos Orfeus [6], encadeia à sua, lira mágica estas feras humanas ou desumanas que se cha­mam homens, arrebatados e enfurecidos nas mais truculentas alu­cinações.

Não pedem crescer, medrar, divinizar-se as artes da forma, da proporção, da cor e da harmonia, quando o imaginário tem de afeiçoar os ídolos de uma religião sinistra e humilhante, quando o arquiteto há de erigir os templos de uma sombria divin­dade, quando o pintor tem de ornar com os seus encaustos os paços de um sátrapa oriental, quando o músico há-de ajustar as suas composições às pompas tradicionais de uma civilização imobilizada pela servidão.

(Latino Coelho)


(José Maria Latino Coelho, 1825-1891, escritor português. In: Demóstenes, Oração da Coroa. 2ª edição. Introdução, p. XVII).

[1] Ancila (latinismo) − serva.
[2] houvera por houvesse.
[3] Zêuxis − o mais célebre pintor da antiguidade, natural da Heráclia.
[4] Ictino − arquiteto famoso de Atenas, do século de Péricles; edifi­cou o Partenon em Atenas.
[5] Plectro − instrumento com que se vibravam as cordas da lira.
[6] Orfeu − filho de Calíope, famoso tocador de lira; diz a lenda que, ao som da sua voz e da sua lira, os rios suspendiam o seu curso, as feras se amansavam e o próprio inferno ficava encantado.

Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.


José Maria Latino Coelho (Lisboa, 29 de Novembro de 1825 − Sintra, 29 de Agosto de 1891), mais conhecido por Latino Coelho, militar, escritor, jornalista e político português, formado em Engenharia Militar. Seguiu a carreira das armas, tendo atingido o posto de general de brigada do estado-maior de engenharia. Seguindo um percurso político que o levaria do Partido Regenerador, pelo qual foi eleito deputado, ao Partido Republicano Português, com passagem por um governo do Partido Reformista, de que foi fundador e ministro, a sua carreira política percorreu todo o arco partidário da Monarquia Constitucional. Foi várias vezes eleito deputado, foi par do Reino eleito e exerceu as funções de ministro da Marinha e de vogal do Conselho Geral de Instrução Pública. Foi lente na Escola Politécnica de Lisboa e sócio efetivo e secretário perpétuo da Academia Real das Ciências de Lisboa. Como escritor, notabilizou-se com obras de foro histórico e ensaístico. 



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