A Crônica
O mar de Ismália
Arte Pedro Scaletsky
Quando eu conto, ninguém acredita.
Dizem que é uma história literária demais. Outros falam que é inverossímil até
como literatura. Mas é verdade. Ela se chamava Ismália, tinha 17 anos, era
virgem, lia o poeta Alphonsus de Guimaraens, como sua mãe, que fora casada com
um poeta, e morava na “rua de trás”, em Palomas. Ismália
amava Neto, que foi estudar em Montevidéu e nunca voltou. Foi aí que ela
enlouqueceu. Palomas não tinha torre nem mar. Ismália, mesmo assim, pôs-se a
sonhar. Via uma lua no céu e outra no mar que Palomas não tem. Começou a andar
nua pelas ruas e foi confundida com um fantasma numa madrugada por dois
adolescentes que varavam a noite sonhando com Ismália nua andando pelas ruas.
Os dois saíram em desabalada corrida para suas casas quando viram seus seios
brancos balançando, como se ela pisasse em ondas, sob um luar que parecia cair
sobre um oceano.
Desde essa noite, Ismália foi para a
cama com todos os homens que encontrou: velhos, moços, feios, bonitos, brancos,
negros, todos eram aceitos. Passou a ser chamada de Ismália, a vagabunda.
Quanto mais dava para qualquer um, mais se sentia pura. Guardava-se para Neto.
Passaram-se 13 anos. Numa noite de lua cheia, desceu do trem, que estava
atrasado, um rapaz todo de preto. Bebeu silenciosamente no bolicho do Rubem.
Foi aí que Ismália apareceu e lhe sorriu. Foi atrás dela. Deitaram-se sob um
umbu. Tudo assim, simples, sem qualquer solenidade ou mistério. Não se
reconheceram. Ela lhe contou a sua história. Pela primeira vez, falou a um
homem do seu sofrimento. De repente, parecia tão bela quanto quando tinha 17
anos. Ele se fartou sem a menor cerimônia, cobriu os olhos com o chapéu para se
proteger do luar e dormiu. Ismália ficou acordada vendo a lua cair no mar.
Levantou-se e andou alguns passos
como se entrasse mar adentro. Chegava a dar pulinhos por cima das ondas que
nunca vira. Ouvia o barulho, que desconhecia, do mar e experimentava a
suavidade de uma brisa marinha inexistente em Palomas. A lua brilhava
mais do que nunca. Lembrou-se da mãe, sempre à espera do pai, o poeta. Sentiu a
água subindo-lhe pelas coxas (disse isso ao delegado) e quase desmaiou de
prazer. Teve o seu primeiro orgasmo na vida. Embora ignorasse essa palavra, foi
o que descreveu, como se estivesse em transe, aos policiais. Voltou apaziguada
para junto do estranho, que roncava.
Foi então que algo lhe aconteceu.
Sentiu-se esquisita, como contaria mais tarde, fria: por que estava ali, tarde
da noite, deitada com um estranho? Teve nojo. Achou-se impura. Pensou em Neto. Mexeu na mochila
do homem. Havia uma faca entre dois livros. Enterrou a lâmina com uma firmeza
que suas mãos jamais haviam possuído. Viu o sangue correr da lua para o mar.
Saiu correndo, nua, pelas ruas assustando dois guris imberbes que sonhavam
certamente em vê-la nua pelas ruas. Na mochila de Neto, ao lado de alguns
documentos, a Polícia encontrou um livro de Alphonsus de Guimaraens, uma foto
de Ismália e as Obras Completas de Borges. A foto de uma menina magrela e olhar
negro perdido marcava uma página com uma frase sublinhada em vermelho: “A la
realidade le gustan les simetrias e los leves anacronismos”. Assim.
Juremir Machado da Silva
O Poema
Ismália
Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...
E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...
E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...
E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...
E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...
Alphonsus de
Guimaraens
Alphonsus de Guimaraens (Afonso
Henriques da Costa Guimaraens), nasceu em Ouro Preto (MG), em 1870 e faleceu em Mariana
(MG), em 1921. Bacharelou-se em Direito, em 1894, em sua terra natal. Desde
seus tempos de estudante colaborava nos jornais “Diário Mercantil”, “Comércio
de São Paulo”, “Correio Paulistano”, “O Estado de S. Paulo” e “A Gazeta”. Em
1895 tornou-se promotor de Justiça em Conceição do Serro (MG) e, a partir de
1906, Juiz em Mariana (MG), de onde pouco sairia. Seu primeiro livro de poesia,
Dona Mística, (1892/1894), foi publicado em 1899, ano em que também saiu o
“Setenário das Dores de Nossa Senhora. Câmara Ardente”. Em 1902, publicou
“Kiriale”, sob o pseudônimo de Alphonsus de Vimaraens. Sua “Obra Completa” foi
publicada em 1960. Considerado um dos grandes nomes do Simbolismo, e, por vezes,
o mais místico dos poetas brasileiros, Alphonsus de Guimaraens tratou em seus
versos de amor, morte e religiosidade. A morte de sua noiva Constança, em 1888,
marcou profundamente sua vida e sua obra, cujos versos, melancólicos e
musicais, são repletos de anjos, serafins, cores roxas e virgens mortas.
(fonte: Itaú
Cultural)
Publicado no livro Pastoral aos crentes do amor e da morte: este poema, integrante da série “As Canções”, foi incluído no livro “Os cem melhores poemas brasileiros do século”, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001, pág. 45, uma seleção de Ítalo Moriconi.
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