Prof. Nelson Viana dos Santos
Entrou na sala quando os professores
saíam para as classes. Procurava desviar o olhar dos colegas que, por outro
lado, nada comentavam, simulando uma normalidade que não mais existia.
Como fazia há anos, apanhou o chaveiro e
abriu a porta do armário de aço. Aquele frio aço envelhecido que guardava
objetos conhecidos: algumas gramáticas marcadas pelo uso, giz, apagador, os
diários do ano... Involuntariamente lembrou-se do poema de Drummond. Quisera
ter aquele aço na alma para não sofrer como vinha sofrendo nos últimos dias.
Pegou o necessário, fechou o armário e caminhou rumo à escada que conduzia ao
andar superior. Um ou outro aluno, retardatário, subia às pressas, vencendo
dois degraus de cada vez. Sentiu uma certa inveja daquela juventude, daquela
adolescência confusa, mas cheia de energia e de sonhos. “És todo certeza. Já
não sabes sofrer.” Drummond novamente. Mas ele sofria e, ao vencer o primeiro
lanço, sentiu uma pequena vertigem. Seu corpo cansado, já envelhecido por anos
e anos de trabalho, acusou o esforço despendido. Seus olhos ficaram nublados e
um imenso cansaço fez com que buscasse o apoio da parede. Fraqueza na certa.
Nos últimos dias nada comera. Depois
do enterro de Ana, um parente oferecera ajuda, quiseram levá-lo embora, mas ele
recusara. Voltar para casa era penoso, mas mais difícil seria conviver com os
parentes, verdadeiros estranhos que usavam o mesmo sobrenome. Tudo se resumia
no seguinte: como suportar o que lhe restava de vida? Como suportar os outros?
Avançou pelo corredor como um
autômato. Na verdade arrastava um corpo envelhecido e uma alma semimorta. Numa
fração de segundo recordou seu início de carreira como professor de Português.
Seus planos, seu entusiasmo. Trinta e tantos anos depois o entusiasmo
desaparecera. Nos últimos anos, cada vez mais, sentia dificuldade de conviver
com seus alunos e seus colegas mais jovens. Faltava paciência; a comunicação
era difícil, poucos se interessavam por livros e ele, o professor, que deveria
estimular o interesse da juventude pelos clássicos, já se sentia sem forças
para lutar contra a impaciência dos alunos.
Nos últimos anos pensava muito na
aposentadoria. Pretendiam mudar-se para o litoral, que Ana tanto amava, e
envelhecer juntos. Não tiveram filhos, mais por causa dele − o que de certa
forma revelava egoísmo de sua parte. Ana aceitara a decisão por amor a ele...
Agora ela se fora e o passado não mais podia ser modificado.
Nesse momento deu-se conta que já
estava na sala, atrás da mesa, olhando para os alunos com os dedos polegares e
indicadores apoiados no tampo da mesa, seu velho costume. Disse bom-dia. Os
alunos responderam e, sensíveis, esperaram o velho professor dizer alguma
coisa. Aquele velho maçante por quem, no fundo, tinham uma grande estima. Por
um momento passou os olhos pela classe; quarenta pares de jovens e brilhantes
olhos esperavam, solidários, que o mestre tivesse forças para iniciar a aula.
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