Por Eduardo Bueno
Gaúcho, gravura de
Francisco Stockinger
Todo mundo sabe o que significa
“gaúcho”, mas ninguém sabe o que “gaúcho” quer dizer. A palavra evoca aventura,
nostalgia, romance; recende a sangue, suor e poeira; ecoa o tropel de cavalos,
o brado dos bravos, e o retinir de metais. Tem algo de épico e grandiloquente –
mas arrasta para um turbilhão de imagens cambiantes e origens indeterminadas.
De onde surgiu o gaúcho? Os
historiadores continuam atolados na areia movediça das polêmicas vãs. O gaúcho
é berbere, árabe, oriental ou andaluz? O gaúcho é charrua, quíchua ou araucano?
Ninguém sabe. O mais provável é que todas as opções sejam mais ou menos
verdadeiras: o gaúcho é um mestiço forjado na fronteira – mescla elementos de
várias nações indígenas com a complexa tradição luso-castelhana, por sua vez
repleta de influência moura. No esforço para conjurar esse mosaico, já houve os
que arriscassem uma definição, com mais ou menos felicidade: gaúcho, o centauro
dos pampas, é meio touro, meio galo, quase uma mistura de índio com cavalo.
Mas o que, afinal, quer dizer gaúcho?
A palavra, escrita pela primeira vez em 1743, vem do persa, do árabe, do
sânscrito, do quíchua, do araucano ou do guarani? Ninguém sabe ao certo. De
certo mesmo, só que surgiu quase como palavrão. Gaudério, changador, garrucho
ou haragano – todos sinônimos de ‘gaúcho” – eram também sinônimos de vagabundo,
vagamundo, ou “bagamundo”. Ladrões de gado, “guascas”, sem lei nem rei, que
viviam dentro de suas camisas, debaixo de seus chapéus e em cima de seus
cavalos.
Dentre as ervas daninhas que vingaram
na selva das palavras, a flor mais bela foi colhida por Aurélio Porto, em 1946:
“guaú”, do guarani “cantar tristemente”, mais “che”, do quíchua “gente, homem”;
ou seja: “homem que canta triste”. Definição linda e poética – pena que errada.
A origem mais provável remete ao araucano: “huagchu”, que virou “guacho” e quer
dizer “filho que não conhece o pai”, ou “órfão”. Ou seja: o bendito fruto de
uma união fugaz entre um aventureiro que passava com uma mãe indígena que se
deixou seduzir. Um mestiço em um mundo em mutação.
Só que a lenda sempre importou mais
do que a realidade: a transformação do gaúcho em peão (“peão”: aquele que anda
a pé), o empenho dos estancieiros em suprimir o estilo de vida independente, a
substituição da indumentária feita à mão por peças industriais, a opressão e a
desordem – nada disso aparece na obra dos poetas e prosadores que cantaram o
gaúcho.
Seja como for, lá está o gaúcho – só, altivo,
melancólico. A cena toda tingida em tom crepuscular: um homem a cavalo, metido
num poncho e sorvendo o mate, silhuetado no entardecer que se derrama sobre a
vastidão do pampa. Gaúchos são sombras numa correnteza de grama na planície sem
cercas nem porteiras, com o pé no estribo e o pé na estrada.
Ser gaúcho é um estado de espírito.
Ser gaúcho é ser gauche na vida. Ser gaúcho é um destino – e quem disse foi
Jorge Luis Borges.
(Texto de Zero Hora,
setembro de 2018)
Glossário
Charrua: indivíduo dos charruas,
uma das três grandes tribos indígenas, que habitavam parte do território do Rio
Grande do Sul. Eram bravos guerreiros e nunca se submeteram à civilização e
muito menos aos conquistadores.
Changador: aquele que faz changas ou carretos, carregador,
changueiro.
Gaudério: aquele que acompanha qualquer pessoa,
abandonando-a logo para seguir outra.
Haragano ou aragano: diz-se do
cavalo que dificilmente se deixa agarrar. Mandrião, velhaco, vagabundo.
Guasca: nome que se dá ao gaúcho
do campo, criado no interior, longe dos grandes centros. Sinônimo de valente,
corajoso, bravo, forte e, sobretudo, rústico e de pouca cultura.
Guacho ou guaxo: diz do animal ou
criança amamentada com leite que não é o materno.
Peão: trabalhador de estância.
(Do “Dicionário Gaúcho”,
de Alberto Juvenal de Oliveira)
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