sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Gaudério

Por Eduardo Bueno


Gaúcho, gravura de Francisco Stockinger

Todo mundo sabe o que significa “gaúcho”, mas ninguém sabe o que “gaúcho” quer dizer. A palavra evoca aventura, nostalgia, romance; recende a sangue, suor e poeira; ecoa o tropel de cavalos, o brado dos bravos, e o retinir de metais. Tem algo de épico e grandiloquente – mas arrasta para um turbilhão de imagens cambiantes e origens indeterminadas.

De onde surgiu o gaúcho? Os historiadores continuam atolados na areia movediça das polêmicas vãs. O gaúcho é berbere, árabe, oriental ou andaluz? O gaúcho é charrua, quíchua ou araucano? Ninguém sabe. O mais provável é que todas as opções sejam mais ou menos verdadeiras: o gaúcho é um mestiço forjado na fronteira – mescla elementos de várias nações indígenas com a complexa tradição luso-castelhana, por sua vez repleta de influência moura. No esforço para conjurar esse mosaico, já houve os que arriscassem uma definição, com mais ou menos felicidade: gaúcho, o centauro dos pampas, é meio touro, meio galo, quase uma mistura de índio com cavalo.

Mas o que, afinal, quer dizer gaúcho? A palavra, escrita pela primeira vez em 1743, vem do persa, do árabe, do sânscrito, do quíchua, do araucano ou do guarani? Ninguém sabe ao certo. De certo mesmo, só que surgiu quase como palavrão. Gaudério, changador, garrucho ou haragano – todos sinônimos de ‘gaúcho” – eram também sinônimos de vagabundo, vagamundo, ou “bagamundo”. Ladrões de gado, “guascas”, sem lei nem rei, que viviam dentro de suas camisas, debaixo de seus chapéus e em cima de seus cavalos.

Dentre as ervas daninhas que vingaram na selva das palavras, a flor mais bela foi colhida por Aurélio Porto, em 1946: “guaú”, do guarani “cantar tristemente”, mais “che”, do quíchua “gente, homem”; ou seja: “homem que canta triste”. Definição linda e poética – pena que errada. A origem mais provável remete ao araucano: “huagchu”, que virou “guacho” e quer dizer “filho que não conhece o pai”, ou “órfão”. Ou seja: o bendito fruto de uma união fugaz entre um aventureiro que passava com uma mãe indígena que se deixou seduzir. Um mestiço em um mundo em mutação.

Só que a lenda sempre importou mais do que a realidade: a transformação do gaúcho em peão (“peão”: aquele que anda a pé), o empenho dos estancieiros em suprimir o estilo de vida independente, a substituição da indumentária feita à mão por peças industriais, a opressão e a desordem – nada disso aparece na obra dos poetas e prosadores que cantaram o gaúcho.

Seja como for, lá está o gaúcho – só, altivo, melancólico. A cena toda tingida em tom crepuscular: um homem a cavalo, metido num poncho e sorvendo o mate, silhuetado no entardecer que se derrama sobre a vastidão do pampa. Gaúchos são sombras numa correnteza de grama na planície sem cercas nem porteiras, com o pé no estribo e o pé na estrada.

Ser gaúcho é um estado de espírito. Ser gaúcho é ser gauche na vida. Ser gaúcho é um destino – e quem disse foi Jorge Luis Borges.

(Texto de Zero Hora, setembro de 2018)

Glossário

Charrua: indivíduo dos charruas, uma das três grandes tribos indígenas, que habitavam parte do território do Rio Grande do Sul. Eram bravos guerreiros e nunca se submeteram à civilização e muito menos aos conquistadores.

Changador: aquele que faz changas ou carretos, carregador, changueiro.

Gaudério: aquele que acompanha qualquer pessoa, abandonando-a logo para seguir outra.

Haragano ou aragano: diz-se do cavalo que dificilmente se deixa agarrar. Mandrião, velhaco, vagabundo.

Guasca: nome que se dá ao gaúcho do campo, criado no interior, longe dos grandes centros. Sinônimo de valente, corajoso, bravo, forte e, sobretudo, rústico e de pouca cultura.

Guacho ou guaxo: diz do animal ou criança amamentada com leite que não é o materno.

Peão: trabalhador de estância.

(Do “Dicionário Gaúcho”, de Alberto Juvenal de Oliveira)

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