sábado, 29 de setembro de 2018

Quem são eles?



Escrito por Bruno Hoffmann

Seja para escapar de perseguição política, se arriscar em estilos considerados menores ou só por brincadeira, ilustres brasileiros trataram de esconder a identidade real na hora de assinar suas obras.

Você sabe quem é Urbano, Boas Noites, Victor Leal e Inimigo dos Marotos? Certamente sabe, só não está ligando o nome à pessoa. É sob esses pseudônimos que personalidades como Di Cavalcanti, Machado de Assis, Olavo Bilac e dom Pedro 1º assinaram algumas de suas obras e escritos. E não foram só eles que se valeram do artifício. No Dicionário Literário Brasileiro, de Raimundo de Menezes, há registro de quase dois mil pseudônimos de escritores brasileiros.

Mas o que leva personalidades a sacrificarem seus nomes no momento de assinar o que fazem? Os motivos são diversos. Alguns viviam em momentos políticos tensos, e essa era a maneira de falarem o que desejavam, preservando a própria pele. Outros, para se aventurar em estilos artísticos considerados menores, ou fora do moral vigente, sem manchar o próprio nome. Havia ainda quem trocasse de nome por pura galhofa. É o caso de Aparício Torelly, que se tornou Barão de Itararé para conceder a si mesmo “uma carta de nobreza”.

Apesar das tentativas de se esconder sob nomes insuspeitos, não teve jeito. O Almanaque despiu a fantasia de grandes brasileiros que, anonimamente, criaram polêmicas, provocaram poderosos, maltrataram adversários e até receberam propostas de casamento. Histórias inusitadas e saborosas não faltam. Afinal, quando a identidade é preservada, a liberdade é total.

Presidiário pediu Nelson Rodrigues em casamento

Histórias amorosas e apimentadas de uma desconhecida Suzana Flag começaram a fazer sucesso nas páginas de O Jornal no fim da década de 1940. O folhetim diário Meu Destino É Pecar tornou-se o principal entretenimento das mulheres casadas, que destacavam o caderno do jornal comprado pelos maridos. Certa vez, um erro da gráfica fez com que o periódico não trouxesse a continuação da história do dia anterior. Duzentas senhoras invadiram a redação para tirar satisfação com o editor, exigindo saber logo como findaria a trama.

Mas não eram só as madames que tinham admiração por Suzana Flag. Era comum a cronista receber cartas de admiradores, algumas até com pedidos de casamento – certa vez, um presidiário apaixonado teria sugerido levar a moça ao altar. O público só começou a desconfiar da identidade da escritora quando a página de Suzana – nesta altura, já no Última Hora – acabou para dar lugar a outra coluna muito parecida: A Vida Como Ela É. Sim, para decepção dos apaixonados, Suzana Flag era Nelson Rodrigues.

O compositor erudito Guerra-Peixe também gostava de se aventurar pela canção popular. Mas anonimamente. O músico gravou discos como Jean Kelson e compôs sambas e boleros como Célio Rocha e Bob Morl.

Machado de Assis, ou Malvolio, ou Victor de Paula, ou Lélio...

Durante a vida, Machado de Assis escreveu muitos contos e artigos para a imprensa. Boa parte deles valendo-se de pseudônimos – desde o óbvio M.A. até o inusitado João das Regras. Sob esses nomes, o escritor criticou a imprensa, analisou costumes e defendeu o fim da escravidão. Conheça alguns dos muitos personagens por trás do Bruxo do Cosme Velho.

Para a revista O Espelho, em 1859, M.-AS. divulgou um evento que aconteceria, e citou a si mesmo, dizendo que haveria “poesia do sr. Machado de Assis, meu íntimo amigo, meu alter ego, a quem tenho muito afeto”.

Segundo o escritor Max Fleiuss, foi na Semana Ilustrada que Machado de Assis conquistou maior habilidade para fazer crônicas. Mas não queria saber de usar o próprio nome. Assinava Dr. Semana.

Como Victor de Paula, Machado publicou contos no Jornal da Família. Anos depois, confessou, ao lançar o texto em outro jornal: “Este escrito teve um primeiro texto, que reformei totalmente mais tarde, não aproveitando mais do que a ideia. O primeiro foi dado com um pseudônimo e passou despercebido”.

Para a seção Bons Dias, da Gazeta de Notícias, Machado criticava os fazendeiros favoráveis à permanência da escravidão. Mas era Boas Noites quem assinava os textos. Outros pseudônimos do Bruxo do Cosme Velho: Job, Platão, Lara, Manassés, Eleazar, Lélio, Malvolio.

Autor de sacanagem era respeitável funcionário público

Uma publicação apimentada embalou a imaginação dos jovens durante os anos 1950 e 1960. Eram revistas clandestinas com desenhos e textos de alto teor erótico. Quem assinava era um tal de Zéfiro. O autor tinha boa razão para esconder o nome real: Alcides de Aguiar Caminha era funcionário público. Sua identidade só foi revelada em 1990, numa histórica entrevista para a Playboy. A capa do disco Barulhinho Bom, de Marisa Monte, traz ilustrações de Alcides, ou Zéfiro.

Di Cavalcanti começou a carreira a inda adolescente, em 1914, como cartunista. Mas foi como ilustrador da revista Guanabara, em 1920, que começou a chamar a atenção. Porém, ninguém sabia de quem se tratava. Di assinava como Urbano, principalmente quando os temas de seu s traços eram políticos.

O Partido Comunista não gostava nada das atividades literárias de Pagu. Para driblar o partidão, a escritora passou a assinar seus contos como King Shelter.

Quando Alceu Amoroso Lima foi convidado para ser crítico literário em O Jornal, em 1919, decidiu mudar o nome para Tristão de Ataíde. À época, ele havia herdado do pai a fábrica de tecidos Cometa, e queria distinguir a atividade empresarial da literária.

Para ser músico, Braguinha virou passarinho arquiteto

O pai fazia questão que o rapaz cursasse Arquitetura. Disso não abria mão. Mas o que Braguinha queria mesmo era saber de música. Logo, o futuro autor de algumas das marchinhas mais emocionantes que conhecemos se tornaria integrante do Bando de Tangarás, ao lado de Noel Rosa e Almirante. E para fugir da marcação paterna, adotou um pseudônimo: João de Barro. Ironicamente, o pássaro arquiteto.

Articulista misterioso bombardeava inimigos de Pedro 1º

O reinado de dom Pedro 1º foi marcado por atribulações políticas entre o governo e opositores. Os inimigos do imperador às vezes recebiam respostas via imprensa – muitas vezes recaindo para a baixaria. Principalmente quando eram assinadas por Duente, Aristarco ou Inimigo dos Marotos. O autor por trás desses nomes era o próprio imperador. Num artigo para o jornal O Espelho, dom Pedro (ou, melhor, Aristarco) disparou contra um desafeto: “Ninguém é mais estrondoso em arrotar, mais forte em espumar e mais pequeno em argumentar”.

Maneco criou Jacinto para manter fama de macho

O jornalista Maneco Muller é considerado o precursor da moderna coluna social brasileira. Quando aceitou o cargo no jornal Correio da Manhã, porém, pediu ao editor para assinar como Jacinto de Thormes, personagem de um romance de Eça de Queirós. E justificou: “É que coluna social é coisa de veado”.

Primeira-dama caricaturista invertia o nome para se proteger

Ela é tida como a primeira mulher caricaturista do Brasil, mas há quem defenda que foi a primeira do mundo. Nair de Teffé não perdoava os poderosos com seus desenhos ácidos e debochados. Por ser mulher, filha de barão e mais tarde esposa do presidente Hermes da Fonseca, tinha razões de sobra para preservar seu nome nas caricaturas que publicava em periódicos como Fon-Fon, O Malho e Revista da Semana. Assinava como Rian – Nair de trás para frente.

Bilac usou pseudônimo para lançar literatura barata

Fim do século 19. Um escritor chamado Victor Leal se tornou popular por seu estilo ultrarromântico ao publicar três histórias em jornais cariocas. Destaque para O Esqueleto, de 1890. Como ninguém o conhecia, um ilustrador tratou de desenhá-lo como um sujeito magro, narigudo e que usava chapéu e monóculo. Na verdade, Victor Leal nunca existiu. Era um pseudônimo conjunto do jornalista Pardal Mallet, do dramaturgo Coelho Neto e dos escritores Aluísio Azevedo e Olavo Bilac. Era uma forma de todos sentirem-se livres para produzir “literatura barata”, de menor qualidade. É de Bilac – um parnasiano ferrenho – boa parte dos textos melosos de O Esqueleto.

Sérgio Porto criou não só Stanislaw, mas toda a sua família

Quando o jornalista Sérgio Porto foi convidado a ocupar o espaço da coluna de Jacinto de Thormes no Diário Carioca, em 1953, tratou de fazer a mesma exigência do antecessor: ter um pseudônimo. A intenção era ter liberdade total para escrever o que lhe desse na telha. E assim nasceu Stanislaw Ponte Preta, além de sua família, que incluía tia Zulmira – ermitã que costurava casaquinhos para órfãos de uma colônia de nudismo –, e Rosamundo das Mercês, o distraído, que um dia foi entregar roupas no casarão da família e esqueceu de voltar para casa. Mais tarde, Porto escondeu-se sob o personagem para publicar ácidas críticas à ditadura militar na seção Febeapá – Festival de Besteiras que Assola o País.

“O Chico Buarque está faturando no meu nome”

Em meados da década de 1970, as músicas de Chico Buarque dificilmente passavam pelo crivo da censura. O compositor então assumiu o pseudônimo Julinho da Adelaide para assinar Acorda Amor, retrato claro da perseguição política na época: Sonhei que tinha gente lá fora / Batendo no portão, que aflição / Era a dura, numa muito escura viatura... Julinho ainda comporia Jorge Maravilha e Milagre Brasileiro.

Mais tarde, Chico tratou de dar molho especial ao personagem. Numa entrevista a Mário Prata para o jornal Última Hora, “Julinho” disse não querer ser fotografado por ter cicatriz na testa, surgida após ser atingido pelo violão de Sérgio Ricardo durante o festival de música de 1967. E até falou mal de Chico: “O Chico Buarque está faturando no meu nome”.

Batalha que não aconteceu fez nascer o Barão de Itararé

Barão de Itararé é o pioneiro no jornalismo político com humor no Brasil. O pseudônimo pomposo de Aparício Torelly surgiu em 1930. As tropas de Getúlio Vargas ameaçavam sair do Rio Grande do Sul para tomar o poder. Os homens fiéis ao presidente Washington Luís prometiam resistir. E a imprensa anunciou que poderia haver “a batalha mais sangrenta da América do Sul” na cidade de Itararé, entre São Paulo e Paraná. Mas logo os envolvidos trataram de fazer acordos. As trocas de favores políticos evitaram a batalha. Aparício Torelly ironizou a situação, dizendo que não tinha sobrado nada para ele. “Eu fiquei chupando o dedo. Foi então que resolvi conceder a mim mesmo uma carta de nobreza. Então passei a Barão de Itararé, em homenagem à batalha que não houve.”

Em Almanaque Brasil da TAM


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