Luis Guimarães Júnior
Eu tive um cão. Chamava-se
Veludo:
Magro, asqueroso, revoltante, imundo,
Para dizer numa palavra tudo
Foi o mais feio cão que houve no mundo.
Recebi-o das mãos dum camarada.
Na hora da partida, o cão gemendo
Não me queria acompanhar por nada:
Enfim − mau grado seu − o vim trazendo.
O meu amigo cabisbaixo, mudo,
Olhava-o... o sol nas ondas se abismava....
«Adeus!» − me disse, − e ao afagar Veludo
Nos olhos seus o pranto borbulhava.
«Trata-o bem. Verás como o rasteiro
Te indicará os mais sutis perigos;
Adeus! E que este amigo verdadeiro
Te console no mundo ermo de amigos.»
Veludo a custo habituou-se à vida
Que o destino de novo lhe escolhera;
Sua rugosa pálpebra sentida
Chorava o antigo dono que perdera.
Nas longas noites de luar brilhante,
Febril, convulso, trêmulo, agitado
A sua cauda − caminhava errante
A luz da lua − tristemente uivando.
Toussenel: Figuier e a lista imensa
Dos modernos zoológicos doutores
Dizem que o cão é um animal que pensa:
Talvez tenham razão esses senhores.
Lembro-me ainda. Trouxe-me o correio,
Cinco meses depois, do meu amigo
Um envelope fartamente cheio:
Era uma carta. Carta! era um artigo.
Contendo a narração miúda e exata
Da travessia. Dava-me importantes
Notícias do Brasil e de La Plata,
Falava em rios, árvores gigantes:
Gabava o steamer que o levou; − dizia
Que ia tentar inúmeras empresas:
Contava-me também que a bordo havia
Mulheres joviais − todas francesas.
Assombrava-me muito da ligeira
Moralidade que encontrou a bordo:
Citava o caso de uma passageira...
Mil coisas mais de que me não recordo.
Magro, asqueroso, revoltante, imundo,
Para dizer numa palavra tudo
Foi o mais feio cão que houve no mundo.
Recebi-o das mãos dum camarada.
Na hora da partida, o cão gemendo
Não me queria acompanhar por nada:
Enfim − mau grado seu − o vim trazendo.
O meu amigo cabisbaixo, mudo,
Olhava-o... o sol nas ondas se abismava....
«Adeus!» − me disse, − e ao afagar Veludo
Nos olhos seus o pranto borbulhava.
«Trata-o bem. Verás como o rasteiro
Te indicará os mais sutis perigos;
Adeus! E que este amigo verdadeiro
Te console no mundo ermo de amigos.»
Veludo a custo habituou-se à vida
Que o destino de novo lhe escolhera;
Sua rugosa pálpebra sentida
Chorava o antigo dono que perdera.
Nas longas noites de luar brilhante,
Febril, convulso, trêmulo, agitado
A sua cauda − caminhava errante
A luz da lua − tristemente uivando.
Toussenel: Figuier e a lista imensa
Dos modernos zoológicos doutores
Dizem que o cão é um animal que pensa:
Talvez tenham razão esses senhores.
Lembro-me ainda. Trouxe-me o correio,
Cinco meses depois, do meu amigo
Um envelope fartamente cheio:
Era uma carta. Carta! era um artigo.
Contendo a narração miúda e exata
Da travessia. Dava-me importantes
Notícias do Brasil e de La Plata,
Falava em rios, árvores gigantes:
Gabava o steamer que o levou; − dizia
Que ia tentar inúmeras empresas:
Contava-me também que a bordo havia
Mulheres joviais − todas francesas.
Assombrava-me muito da ligeira
Moralidade que encontrou a bordo:
Citava o caso de uma passageira...
Mil coisas mais de que me não recordo.
Finalmente, por baixo disso tudo
Em nota bene do melhor cursivo
Recomendava o pobre do Veludo
Pedindo a Deus que o conservasse vivo.
Enquanto eu lia, o cão tranquilo e atento
Me contemplava, e − creia que é verdade,
Vi, comovido, vi nesse momento
Seus olhos gotejarem de saudade.
Depois lambeu-me as mãos humildemente,
Estendeu-se a meus pés silencioso
Movendo a cauda, − e adormeceu contente
Farto dum puro e satisfeito gozo.
Passou-se o tempo. Finalmente um dia
Vi-me livre daquele companheiro;
Para nada Veludo me servia,
Dei-o à mulher dum velho carvoeiro.
E respirei! «Graças a Deus! Já posso»
Dizia eu «viver neste bom mundo
Sem ter que dar diariamente um osso
A um bicho vil, a um feio cão imundo».
Gosto dos animais, porém prefiro
A essa raça baixa e aduladora
Um alazão inglês, de sela ou tiro,
Ou uma gata branca cismadora.
Mal respirei, porém! Quando dormia
E a negra noite amortalhava tudo
Senti que à minha porta alguém batia:
Fui ver quem era. Abri. Era Veludo.
Saltou-me às mãos, lambeu-me os pés ganindo,
Farejou toda a casa satisfeito;
E − de cansado − foi rolar dormindo
Como uma pedra, junto do meu leito.
Praguejei furioso. Era execrável
Suportar esse hóspede importuno
Que me seguia como o miserável
Ladrão, ou como um pérfido gatuno.
E resolvi-me enfim. Certo, é custoso
Dizê-lo em alta voz e confessá-lo
Para livrar-me desse cão leproso
Havia um meio só: era matá-lo
Zunia a asa fúnebre dos ventos;
Ao longe o mar na solidão gemendo
Arrebentava em uivos e lamentos...
De instante em instante ia o tufão crescendo.
Chamei Veludo; ele seguia-me. Entanto
A fremente borrasca me arrancava
Dos frios ombros o revolto manto
E a chuva meus cabelos fustigava.
Despertei um barqueiro. Contra o vento,
Contra as ondas coléricas vogamos;
Dava-me força o torvo pensamento:
Peguei num remo − e com furor remamos
Veludo à proa olhava-me choroso
Como o cordeiro no final momento,
Embora! Era fatal! Era forçoso
Livrar-me enfim desse animal nojento.
No largo mar ergui-o nos meus braços
E arremessei-o às ondas de repente...
Ele moveu gemendo os membros lassos
Lutando contra a morte. Era pungente.
Voltei à terra, − entrei
Zunia sempre na amplidão profundo.
E pareceu-me ouvir o atroz lamento
De Veludo nas ondas moribundo.
Mas ao despir dos ombros meus o manto
Notei − oh grande dor! − haver perdido
Uma relíquia que eu prezava tanto!
Era um cordão de prata: − eu tinha-o unido
Contra o meu coração constantemente
E o conservava no maior recato,
Pois minha mãe me dera essa corrente
E, suspenso à corrente, o seu retrato.
Certo caíra além no mar profundo,
No eterno abismo que devora tudo;
E foi o cão, foi esse cão imundo
A causa do meu mal! Ah, se Veludo
Duas vidas tivera − duas vidas
Eu arrancara àquela besta morta
E àquelas vis entranhas corrompidas.
Nisto senti uivar à minha porta.
Corri − abri... Era Veludo! Arfava:
Estendeu-se a meus pés, − e docemente
Deixou cair da boca que espumava
A medalha suspensa da corrente.
Fora crível, oh Deus? − Ajoelhado
Junto do cão − estupefato, absorto,
Palpei-lhe o corpo: estava enregelado;
Sacudi-o, chamei-o! Estava morto!
*****
Luís Guimarães Júnior (Luís
Caetano Guimarães Junior), diplomata, poeta, romancista e teatrólogo, nasceu no
Rio de Janeiro, RJ, em 17 de fevereiro de 1845, e faleceu em Lisboa, Portugal,
em 20 de maio de 1898. Foi um dos dez membros eleitos para se completar o
quadro de fundadores da Academia Brasileira de Letras. Era filho de Luís
Caetano Pereira Guimarães, português, e de Albina de Moura, brasileira. Fez os
primeiros estudos no Rio de Janeiro. Aos dezesseis anos escreveu o romance
Lírio branco, dedicado a Machado de Assis. Cursou Direito no Recife entre 1864
e 1869, onde assistiu ao desenvolvimento da “escola condoreira”, em que tomou
parte. Continuou a escrever, multiplicando-se no jornalismo e escrevendo livros
de contos, comédias e poesias. Sua situação no jornalismo e nas letras, embora
brilhante, não lhe proporcionava os meios para viver estavelmente. O poeta e
amigo Pedro Luís, então ministro dos Negócios Estrangeiros, oferece-lhe um
lugar na diplomacia como secretário de Legação em Londres. De 1873 a 1894, passou por
vários outros postos, em Santiago do Chile, em Roma e em Lisboa.
Obras: Lírio branco, romance
(1862); Uma cena contemporânea, teatro (1862); Corimbos, poesia (1866); A
família agulha, romance (1870); Noturnos, poesia (1872); Filigranas, ficção
(1872); Sonetos e rimas, poesia (1880); Contos sem pretensão (1872); e várias
peças de teatro.
Fonte: biblio.com.br. A
Biblioteca Virtual de Literatura