Nando Gross*
Sessenta anos depois do seu
lançamento em março de 1959, o disco “Chega de Saudade”, de João Gilberto,
segue sendo motivo de debates e inúmeras teses sobre a origem da bossa nova e
suas influências. Seria uma ruptura com o samba-canção, seria um estrangeirismo
influenciado pelos norte-americanos, uma ramificação do jazz?
Na verdade, a Bossa Nova é muito mais
do que tudo isso e somente quem a escuta consegue realmente sentir a sua
mensagem e perceber que a sua origem está na variedade do própria música
brasileira. “Chega de Saudade” mudou a história da música popular brasileira e
a projetou internacionalmente sob o rótulo de Bossa Nova. A música de Tom Jobim
e Vinicius de Moraes traz a batida totalmente nova do violão de João Gilberto e
um novo modo de cantar.
A batida de João deixou muita gente
intrigada especialmente pela mão direita, aquela que determina o ritmo. Na mão
esquerda, uma variedade de acordes dissonantes compondo um desenho harmônico
impressionante. João faz parecer ser simples o que é de enorme complexidade.
Como um craque de bola que nos faz acreditar que jogar futebol é extremamente
fácil. A voz torna-se independente do instrumento, por vezes ela aparece na
frente, outras vezes atrasada, mas lá na frente se encontram perfeitamente.
Quem canta e se acompanha no violão sabe o que quanto é difícil fazer isso.
“Chega de Saudade” foi gravada pela
primeira vez em 10 de julho de 1958, na voz de Elizeth Cardoso, que a gravou
com arranjos de Tom Jobim e o violão de João Gilberto. Mas foi com João que a
canção realmente ganhou o mundo e definiu o que ficaria consagrado como a bossa
nova, a mais bem acabada versão da produção musical brasileira. A partir do
disco de João Gilberto, a bossa nova estabeleceu seus contornos definitivos. As
grandes vozes como Vicente Celestino e Sílvio Caldas agora davam lugar para os
sussurros de João. É o mais importante, revolucionária batida do violão.
Foi a bossa nova que deu fim ao chamado
“complexo de vira-latas”, identificado por Nelson Rodrigues. Nos anos 1950, a música brasileira
andava em baixa, ofuscada pelos estrangeiros cantores de boleros, deixando em
segundo plano artistas como Noel Rosa, Cartola, Lupicínio Rodrigues e outros. A
bossa chega enfiando o pé na porta. Os críticos daquele período apenas
identificaram influências do jazz, mas não perceberam que ela veio para
resgatar a verdadeira tradição da música brasileira. Tom Jobim foi o grande
gênio por trás de tudo. É, sem dúvida, o maior artista brasileiro de todos os
tempos. Foi ele quem produziu e fez a direção musical dos trabalhos de João
Gilberto, desde “Chega de Saudade” como nos demais trabalhos.
Tom sabia exatamente como deixar
intacta a personalidade de João nos seus discos. Enquanto João deu protagonismo
ao violão, Tom percebeu exatamente como deveria proceder nos arranjos, gravando
sem a presença do contrabaixo para que os bordões do violão de João
determinassem a acentuação dos tempos fortes. Tom ainda fez com que a bateria
tocasse no contratempo e sem a utilização do bumbo, apenas com a condução de
vassourinha, sem baquetas. O arranjo girava todo ele sempre em função do violão
de João Gilberto.
Foi a partir da bossa nova que o
Brasil define um novo modelo de fazer música, introduzindo harmonias mais
refinadas e rediscutindo o conceito para as interpretações das canções. João
Gilberto é a maior referência de intérprete do movimento e inspirador de
inúmeros cantores que chegaram depois. Antes da bossa muitos compositores não
tinham coragem de cantar, mas uma nova ideia foi difundida no país,
estabelecendo que não era necessário ter vozeirão para cantar e sim saber
cantar.
O disco “Chega de Saudade” traz todos
os elementos que definiram a bossa nova. O lado B abre com “Desafinado”, de Tom
e Newton Mendonça, onde João brinca com seus críticos que o acusavam de não ter
voz para cantar. A letra retrata todo o conceito que mudaria a música
brasileira para sempre.
O disco ainda traz duas músicas de
Ary Barroso, Dorival Caymmi, Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli e duas composições de
João Gilberto “Hô-Bá-Lá-Lá, e “Bim-Bom”. Tudo sob o comando do maestro Tom
Jobim, responsável pelos arranjos do disco.
(...)
E meio a tantos debates e teses, o
mais importante é que não é preciso entender a bossa nova para gostar dela,
basta apenas senti-la. Nada melhor do que fazer isso voltando sessenta anos no
tempo e botando “Chega de saudade” para rodar.
*Jornalista, diretor de
programação da Rádio Guaíba.
(No Correio do Povo,
janeiro de 2019)
Capa do LP “Chega de
Saudade”
Foto da capa do LP: O homem que nunca sorria; suéter do amigo "Ronga" (Ronaldo Bôscoli), que nunca foi devolvido. Na cabeça, à esquerda, a sombra do spot que queimou.
Chega de Saudade
Música de Antônio
Carlos Jobim, Letra de Vinicius de Moraes
Vai, minha tristeza,
E diz a ela que sem ela não pode
ser.
Diz-lhe numa prece,
Que ela regresse,
Porque eu não posso mais sofrer.
Chega de saudade,
A realidade é que sem ela não há
paz,
Não há beleza,
É só tristeza e a melancolia,
Que não sai de mim,
não sai de mim, não sai.
Mas se ela voltar
Que coisa linda,
Que coisa louca,
Pois há menos peixinhos a nadar
no mar
Do que os beijinhos que eu darei
Na sua boca.
Dentro dos meus braços,
Os abraços hão de ser milhões de
abraços,
Apertado assim, colado assim,
calado assim.
Abraços e beijinhos e carinhos
sem ter fim,
Que é pra acabar com esse negócio
de você viver sem mim.
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