sábado, 30 de março de 2019

Canção do Exílio



Paródia

Minha terra tem crianças
Onde nascem sem parar,
As crianças que aqui nascem
Não têm lugar pra ficar.

Nosso céu está escuro,
Nossas margens, secas estão...
Nossos parques estão vazios,
Sem destino pra mudar...

Só de pensar, sozinho, à noite,
Mais desgostoso fico de lá.
Minha terra tem crianças...
Sem lugar pra ficar.

Minha terra tem mais temores
Que tais não há como acabar.
Só de pensar sozinho à noite,
Mais desgostoso fico de lá,
Minha terra tem crianças
Sem lugar pra ficar.

Não permita Deus, que eu parta,
Sem que eu veja tudo mudar;
Acabar os terrores...
Que não consiga deixar pra lá!
E sem que aviste as crianças
Com lugar pra ficar.


Alexsandra - Turma: 2005 (1° bimestre/2006)

Pintura acima de Jill Greenberg

Malandros e anti-heróis



Aladim: personagem das “Mil e uma Noites”, Aladim era um jovem árabe que viveu no Oriente Médio. Era vadio, arruaceiro e causava profundo desgosto à mãe. De posse sobre uma “lâmpada mágica”, consegue fortunas da noite para o dia. 


Gastão: personagem de Walt Disney, Gastão (no inglês original, Gladstone Gander) é primo do Pato Donald. Diferente de Zé Carioca, é baseado no estereótipo do malandro estadunidense, com as devidas amenizações. Como modo de vida, conta unicamente com a sorte. Jamais se preocupa em conseguir emprego ou sustento, porque sempre é amparado pelo destino, fato que causa inveja ao primo Donald. 


Pedro Malasarte: personagem originário do folclore popular medieval português, terminou arraigando-se profundamente ao imaginário brasileiro. É um matuto de origem desprivilegiada. Conta apenas com sua própria malandragem para manipular gente mais privilegiada, de forma a obter dela o que necessita para viver com algum conforto.


João Grilo: personagem típico de anedotas oriundas da região Nordeste brasileira. Imortalizado e popularizado por todo o Brasil através da peça teatral “O Auto da Compadecida”, escrita por Ariano Suassuna. A exemplo de Pedro Malasarte, é um matuto de origem desprivilegiada, porém é dotado de esperteza e carisma, que usa para sobreviver. 


Zé Carioca: personagem de Walt Disney, inspirado no estereótipo do malandro carioca. É um papagaio bem-humorado que vive de pequenas espertezas. 


Robin Hood: É um herói mítico inglês, um fora-da-lei que roubava dos ricos para dar aos pobres, aos tempos do Rei Ricardo Coração de Leão. Era hábil no arco e flecha e vivia na floresta de Sherwood. Era ajudado por seus amigos “João Pequeno” e “Frei Tuck”, entre outros moradores. Teria vivido no século XIII, gostava de vaguear pela floresta e prezava a liberdade. Ficou imortalizado como “Príncipe dos ladrões”. Tenha ou não existido tal como o conhecemos, “Robin Hood” é, para muitos, um dos maiores heróis da Inglaterra. 

(Do livro “As Malandragens”, de Maria Helena Guedes)

Homenagem ao Malandro

Chico Buarque

Eu fui fazer um samba em homenagem,
À nata da malandragem,
Que conheço de outros carnavais...

Eu fui à Lapa e perdi a viagem,
Que aquela tal malandragem,
Não existe mais!

Agora já, não é normal,
O que dá de malandro regular, profissional,
malandro com aparato de malandro oficial,
malandro candidato a malandro federal,
malandro com retrato na coluna social,
malandro com contrato, com gravata e capital;
Que nunca se dá mal...

Mas o Malandro pra valer!
- Não espalha -
Aposentou a navalha,
Tem Mulher e filho e coisa e tralha e tal...

Dizem as más línguas, que ele até trabalha,
Mora lá longe e chacoalha,
Num trem da central.

Monólogos de Gota dʼágua



Gota d'água é o título da peça teatral (drama), de autoria dos escritores brasileiros Chico Buarque e Paulo Pontes, escrita em 1975 e publicada em livro homônimo, em 1975, pela editora Civilização Brasileira.

Pelo desfecho de uma fuga em carro celeste, Joana (Medeia) poderia parecer a tragédia grega de mais problemática adaptação à cena contemporânea.  Chico Buarque e Paulo Pontes não só encontram uma admirável equivalência na realidade atual do país, mas deram uma excelente contribuição à dramaturgia brasileira.

Entre outros valores da peça de Eurípedes, o que mais a aproxima de nós é o avassalador ressentimento amoroso da heroína. Medeia fere todas as leis familiares e comete crimes para acompanhar Jasão e, quando poderia desfrutar um convívio sereno, ele a abandona em troca do casamento vantajoso com a filha do rei Creonte. A fúria vingativa, a mágoa intratável de Medeia se fixam no gesto mais terrível e ao mesmo tempo mais grandioso da decepção sentimental: depois de sacrificar a princesa e Creonte, ela extirpa o amor que adoecera aniquilando os seus frutos, isto é, matando os próprios filhos. Uma crueldade espantosa, que é uma forma de autodestruição.

Veneno

(Monólogo da peça teatral Gota dʼágua, Medeia, por Bibi Ferreira*)

Tudo está na natureza encadeado em movimento: cuspe, veneno, tristeza, carne, moinho, lamento, ódio, dor, cebola, coentro, gordura, sangue, frieza, isso tudo está no centro de uma mesma estranha mesa.

Misture cada elemento: uma pitada de dor, uma colher de fermento e uma gota de terror.

O suco dos sentimentos, raiva, medo ou desamor, produz novos condimentos, lágrima, pus e suor, mas inverta o seguimento, intensifique a mistura. Tempero, ódio, lagrimento, sangalho com tristesura, carmento, velho moinho.  Remexa tudo por dentro, passe tudo no moinho, moa carne, sangue, coentro, chore, envenene a gordura: você terá unguento, uma papa grossa e escura, essência do meu tormento e molho de uma fritura de paladar violento, que engolindo, a criatura repara no meu sofrimento com a morte lenta e segura.

Eles pensam que a maré vai, mas nunca volta. Até agora eles estavam comandando meu destino e eu fui, fui, fui, recuando recolhendo fúrias. Hoje, eu sou onda solta e tão forte quanto eles me imaginam fraca. Quando eles virem invertida a correnteza quero ver se eles resistem a surpresa e quero saber como eles reagem a ressaca!

*****

*Atriz da primeira montagem de peça Gota dʼágua.

P.S. Esse monólogo está na internet na voz de Bibi Ferreira.

Joana fala a Jasão

(Monólogo de Joana para Jasão, na peça Gota dʼágua, por Laura Garin*)

Pois bem, você vai escutar as contas que eu vou lhe fazer: te conheci moleque, frouxo, perna bamba, barba rala, calça larga, bolso sem fundo. Não sabia nada de mulher nem de samba e tinha um puto dum medo de olhar pro mundo.

As marcas do homem, Jasão, uma a uma, tu tirou todas de mim. O primeiro prato, o primeiro aplauso, a primeira inspiração, a primeira gravata, o primeiro sapato de duas cores, lembra? O primeiro cigarro, a primeira bebedeira, o primeiro filho, o primeiro violão, o primeiro sarro, o primeiro estribilho, o primeiro refrão.

Te dei cada sinal do teu temperamento. Te dei matéria-prima para o teu tutano. E mesmo essa ambição que, neste momento, se volta contra mim, eu te dei, por engano. Fui eu, Jasão, você não se encontrou na rua não. Você andava tonto quando eu te encontrei. Fabriquei energia que não era tua pra iluminar uma estrada que eu te apontei.

E foi assim, enfim, que eu vi nascer do nada uma alma ansiosa, faminta, buliçosa, uma alma de homem. Enquanto eu, enciumada dessa explosão, ao mesmo tempo, eu, vaidosa, orgulhosa de ti, Jasão, era feliz, eu era feliz, Jasão, feliz e iludida, porque o que eu não imaginava, quando fiz dos meus anos a mais uma sobrevida pra completar a vida que você não tinha, é que estava desperdiçando o meu alento, estava vestindo um boneco de farinha. Assim que bateu o primeiro pé-de-vento, assim que despontou um segundo horizonte, lá se foi meu homem-orgulho, minha obra completa, lá se foi pro acervo de Creonte…

Certo, o que eu não tenho, Creonte tem de sobra: Prestígio, posição… Teu samba vai tocar em tudo quanto é programa. Tenho certeza que Gota d’Água não vai parar de pingar de boca em boca… Em troca pela gentileza vais engolir a filha, aquela mosca morta, como engoliu os meus dez anos. Dez anos... Esse é o teu preço, dez anos. Até que apareça uma outra porta que te leve direto pro inferno. Conheço a vida, rapaz. Só de ambição, sem amor, tua alma vai ficar torta, desgrenhada, aleijada, pestilenta… Aproveitador! Aproveitador!…

*****

*Atriz da segunda montagem da peça Gota dʼÁgua.

P.S. Esse monólogo está na internet na voz a atriz Laura Garin.

sexta-feira, 29 de março de 2019

Carisma

Luis Fernando Veríssimo


O Líder Nato descobriu que tinha carisma quando, certo dia, no jardim da infância, notou que todos os outros copiavam a sua pintura de dedão. Na adolescência, queixou-se aos pais:

− Eu não quero ser um líder!

E os pais:

− Está bem, meu filho. Você é quem manda.

O Líder Nato não pode sair na rua que logo uma multidão se forma às suas costas e o segue por toda parte. Quando o Líder Nato levanta o braço para chamar um táxi, todo o trânsito para e fica aguardando suas ordens. O Líder Nato precisa andar de táxi, e escondido, porque na direção do seu carro criava engarrafamentos terríveis. Era seguido em cortejos intermináveis. Ônibus desviavam das suas rotas para segui-lo. O chefe do trânsito pediu a sua colaboração. Será que ele podia andar de táxi? De ônibus não, porque era só o Líder nato entrar num ônibus e o ônibus lotava. E havia briga na fila entre os que não conseguiam entrar. De táxi, por favor.

− Está bem, a partir de amanhã vou andar de táxi.

− Eu vou junto? – exclamou o chefe do trânsito, antes que pudesse se controlar.

Quem pode explicar o que é carisma? Quando o Líder Nato chega em casa, seus familiares vão correndo ajudar a fechar a porta, se não, a multidão entra atrás. Sempre passam uns dois ou três que seguem nos calcanhares do Líder Nato por dentro da casa, até no banheiro, até na cama, e só saem no dia seguinte. Atrás do Líder Nato. O Líder nato tenta ignorá-los, mas é difícil. Para onde quer que se vire, vê uma cara ansiosa sorridente, pronta a segui-lo até a morte.

Uma vez, o Líder Nato perdeu a paciência e começou a bater num baixinho que o seguia dia e noite. Quando viu, estava todo mundo batendo no baixinho. Outra vez o Líder Nato inventou de ir a Buenos Aires e aí o Brasil invadiu a Argentina.

O Líder Nato foi o mais votado nas últimas eleições, embora não fosse candidato a nada. Foi pedir proteção na Polícia Militar e o comandante mandou formar a tropa para a sua inspeção e insistiu tanto em lhe passar o comando que o Líder Nato desistiu e foi para casa. Correndo, pois toda a corporação vinha atrás. A sua lua-de-mel foi um acontecimento. O enfim sós... foi dito em coro pelos seus seguidores que lotavam o quarto do hotel. Uma multidão impaciente se aglomerava no corredor. A noite de núpcias do Líder Nato teve torcida organizada.

Volta e meia, o Líder nato é apresentado a estranhos homenzinhos verdes.

− Ele pediu para falar com o nosso líder...

O Líder Nato não sabe o que fazer. Se vai a um restaurante, o restaurante enche em seguida; os garçons não conseguem chegar até as mesas e o Líder Nato tem que sair. Com todo mundo atrás. Se vai a um cinema, a mesma coisa. Se fica em casa é obrigado, pelo clamor da multidão, a aparecer na sacada e lhes dirigir algumas palavras.

− Eu não quero ser um líder!

Vivas. Aplausos. Um verdadeiro líder deve ser modesto. Alguém grita:

− É só dar a ordem que nós estamos prontos!

− A ordem é: vão dormir e me deixem em paz!

Risadas. Aplausos. Um verdadeiro líder tem senso de humor.

O Líder Nato resolveu se queixar ao Papa. Ao Governo, não, pois seria constrangedora a deferência do Presidente diante do Líder Nato e na frente do pessoal do palácio. Voou para Roma. Não foi difícil conseguir uma audiência com o Papa. O carisma abria todas as portas. Frente a frente com o sumo pontífice, o Líder Nato finalmente preparou-se para desabafar.

− Vossa Eminência, eu... Por favor, Eminência, não fique de joelhos. Eminência, não precisa beijar o meu anel!


quinta-feira, 28 de março de 2019

As aventuras do Sombra

“Quem sabe o mal que se esconde nos corações humanos?
O Sombra sabe!”


O Sombra era um herói diretamente importado dos Estados Unidos, onde sua popularidade somente era comparável à do Superman.

Como sugere o próprio nome, o Sombra era um sujeito misterioso, estranho e sombrio: usava uma enorme capa preta forrada de vermelho e um chapéu de abas caídas, que ocultava parte do seu rosto, no melhor estilo noir. Como o Mandrake, tinha poderes hipnóticos, que usava para se tornar invisível aos olhos dos inimigos.

O alter ego do Sombra era Lamont Craston, que, com a bela e meiga Margot Lane, passava o dia a desafiar a morte em nome do bem público e da lei. Em 1937, na CBS, o primeiro Sombra foi personificado por Orson Welles, então com apenas 22 anos. Margot Lane foi interpretada por Agnes Moorehead, que, tempos depois, na TV, faria o papel de Endora, mãe de Samantha, a Feiticeira.

Em tudo semelhante ao personagem americano, o Sombra brasileiro foi produzido no Brasil com excelente qualidade técnica e artística. A sonoplastia era do balacobaco, repleta de efeitos espetaculares e emocionantes. Era levado ao ar pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro às 22h05min das terças-feiras e tinha o patrocínio das lâminas de barbear Gilette Azul. Na verdade, era um seriado dirigido quase exclusivamente ao público adulto, pois a garotada corria da sala ao ouvir a voz cavernosa e sinistra do Sombra quando dizia: “Quem sabe o mal que se esconde nos corações humanos? O Sombra sabe!...” (gargalhada apavorante).

O Sombra foi personificado, no Brasil, pelo radioator Saint-Clair Lopes, um ícone não apenas da Nacional como do rádio brasileiro, em que fez de tudo. Foi ator, diretor, redator, programador, discotecário, locutor, escreveu livros, fez palestras sobre radiofusão e comunicação. Só na Rádio Nacional ele permaneceu por 33 anos.

De qualquer modo, o personagem Sombra tornou-se uma espécie de marca, que acompanhou Saint-Clair Lopes pela vida.

Um dia, por volta de 1952 ou 1953, meu pai levou-me à Rádio Nacional e me fez apertar a mão do ator, de quem era amigo. Ao vê-lo sorrir e conversar animadamente com o meu pai, fiquei decepcionado. Não, aquele sujeito que falava sobre as últimas façanhas do time do Flamengo, que ria dos comentários do pai, que não usava chapéu desabado no rosto, que não vestia a misteriosa capa preta – não, não, aquele sujeito não podia ser o Sombra. Eu estava decepcionado. Súbito, porém, Lopes calou-se, olhou muito sério para mim e grunhiu: “Quem sabe...” – e deu a sinistra e inconfundível gargalhada que tanto pânico me causava. Com o coração aos pulos, mas fascinado, me escondi atrás do meu pai, mas agora, finalmente, eu não tinha mais dúvidas. Aquele homem, mesmo sem a capa e o chapéu, que conversava com o pai, era mesmo o Sombra. Só podia ser o Sombra. Afinal, quem mais seria capaz de perceber minha descrença? Que mais seria capaz de ler meus pensamentos? Como fazia com todos que ousavam duvidar das suas artimanhas, o Sombra havia me dado uma lição inesquecível.

(Do “Almanaque da Rádio Nacional”, de Ronaldo Conde Aguiar)


quarta-feira, 27 de março de 2019

A Bagagem



Um homem que caminhava vacilante pela estrada, levando uma pedra numa mão e um tijolo na outra. Nas costas carregava um saco de terra; em volta do peito trazia vinhas penduradas. Sobre a cabeça equilibrava uma abóbora pesada. Pelo caminho encontrou um transeunte que lhe perguntou:

- Cansado viajante, por que carrega essa pedra tão grande?

- É estranho − respondeu o viajante − mas eu nunca tinha realmente notado que a carregava.

Então, ele jogou a pedra fora e se sentiu muito melhor. Em seguida veio outro transeunte que lhe perguntou:

- Diga-me, cansado viajante, por que carrega essa abóbora tão pesada?

- Estou contente que me tenha feito essa pergunta − disse o viajante − porque eu não tinha percebido o que estava fazendo comigo mesmo.

Então ele jogou a abóbora fora e continuou seu caminho com passos muito mais leves. Um por um, os transeuntes foram avisando-o a respeito de suas cargas. E ele foi abandonando uma a uma. Por fim, tornou-se um homem livre e caminhou como tal.

Qual era na verdade o problema dele? A pedra e a abóbora?

Não. Era a falta de consciência da existência delas. Uma vez que as viu como cargas desnecessárias, livrou-se delas bem depressa e já não se sentia mais tão cansado. Esse é o problema de muitas pessoas. Elas estão carregando cargas sem perceber. Não é de se estranhar que estejam tão cansadas! O que são algumas dessas cargas que pesam na mente de um homem e que roubam as suas energias?

pensamentos negativos;
• culpar e acusar outras pessoas;
• permitir que impressões tenebrosas descansem na mente;
• carregar uma falsa carga de culpa por coisas que não poderiam ter evitado;
• autopiedade;
• acreditar que não existe saída.

Todo mundo tem o seu tipo de carga especial, que rouba energia. Quanto mais cedo começarmos a descarregá-la, mais cedo nos sentiremos melhor e caminharemos mais levemente.

Autor: Desconhecido

Trovas humorísticas



Quem quiser tomar amores
Há de ser com a cozinheira
Que ela tem os beiços grossos
De lamber a frigideira.

O amor tem vista curta
E vê tudo de feição:
Diz quem é pálido o mulato,
Diz que é moreno o carvão.

Lá vai a lua saindo
Por detrás da pimenteira...
Já me dói o céu da boca
De beijar moça solteira.

Caboclo não vai pro céu
Nem que seja rezador.
Quem tem o cabelo duro
Espeta o Nosso Senhor...

Cabeça!... que desconsolo!
Cabeça!... força é dizê-lo:
Por fora não tem cabelo,
Por dentro não tem miolo.

Tu fumas; eu também fumo;
Ambos nos fumamos, pois...
Mas, tu fumas do meu fumo,
Portanto, eu fumo por dois...

Você quando tem presunto
Não me convida pra jantar,
Mas quando tem seu defunto
Me chama pra carregar.

Quando vires mulher magra,
Não tem mais que perguntar;
Se é casada, é ciumenta,
Se é solteira, quer casar.

Três coisas velhas são boas
Pote, sapato e café;
Três eu gosto bem fresquinhas,
Água, paçoca e mulher.

Não tenho medo de ti,
Nem da faca mais profunda;
Tenho medo, quando vejo
Perna grossa e cabeluda.

Uma coisa me admira
E me produz confusão:
É ver o vapor correr
Sem unha, sem pé, nem mão.
A Bahia é terra boa
Como outra mais não há.
Eu gosto dela de longe,
Eu aqui e ela lá...

Ceará é terra boa,
Mas não é terra pra mim.
É que a terra só é boa,
Mas é pra gente ruim.

Sempre seguro e breve,
É o meu juízo, dou fé,
Diga-me a cerveja que bebe
E lhe direi quem é.

Nem tudo que ronca é porco,
Nem tudo que berra é bode,
Nem tudo que luz é ouro,
Nem tudo falar se pode.

Teus vestidos eu acho
Mui decentes, minha prima:
São altos demais embaixo
São baixos demais em cima!

Não tenho medo de homem
Nem do ronco que ele tem:
O besouro também ronca,
Vai-se ver, não é ninguém.

Quem quiser ter vida longa
Fuja sempre que puder
De médico, boticário,
Melão, pepino e mulher.

Se me casar, ponho em casa
Tranqueira e chave de broca...
Com  mulher não há fiança,
Cobra se faz da minhoca.

Pancada dada de jeito
Mata sim, sem discussão.
Que farás tu, meu benzinho,
Tu que és um pancadão.

Não quero mais fazer roça
Que a sorte vem contra mim:
Planto cana, nasce alpiste.
Planto arroz, nasce capim.

Eu plantei um pé de couve
E nasceu um pé de quiabo;
As moças são para os moços,
As velhas, para o diabo.

terça-feira, 26 de março de 2019

A qualidade da mensagem e a sua utilidade

A qualidade da mensagem e a sua utilidade

Nível de compreensão e de retenção.

O que o professor:

quer dizer

Diz na realidade.

O que ao alunos:

Ouvem

Escutam atentamente.

Compreendem

Retém

Transmitem.

Para reforçar este diagrama recorda-se o conhecido episódio ocorrido entre soldados. Não pretendemos criticar sua capacidade de comunicação, mas partir de um exemplo prático, evidenciar as dificuldades que, por vezes, sentimos para fazer passar algumas das nossas mensagens.


Ordem do Capitão ao 1º Tenente:

Tenente, havendo amanhã um eclipse do Sol, determino que a Companhia esteja formada na parada, em uniforme de instrução. Aqui darei explicações sobre este fenômeno que não acontece todos os dias. Caso chova,nada se poderá ver, tendo a companhia de ficar dentro do quartel.

Do 1ºTenente ao 3º sargento:

Sargento, por ordem do meu Capitão haverá amanhã um eclipse do sol, em uniforme de instrução. Toda a Companhia terá de estar formada na parada, onde o meu Capitão dará as explicações necessárias, o que não acontece todos os dias. Se chover o fenômeno será mesmo dentro do quartel.

Do 3º Sargento ao Cabo:

Cabo,o nosso Capitão fará amanhã um eclipse do Sol na parada. Se chover, o que não acontece todos os dias, nada se poderá ver. Em uniforme de instrução, o Capitão dará a explicação necessária dentro do quartel.

Do cabo aos Soldados:

Soldados, amanhã a Companhia estará formada para receber o eclipse que dará a explicação necessária sobre o nosso Capitão. O fenômeno será de uniforme de instrução. Isto, se chover dentro do quartel, o que não acontece todos os dias.

Entre os Soldados:

O cabo disse que amanhã o Sol em uniforme de instrução vai fazer um eclipse para o Capitão, que não lhe pedirá explicações. A coisa é capaz de dar uma encrenca dessas que acontece todos os dias. Deus queira que chova!

(Do livro “Guia do animador”, de Paulo da Trindade Ferreira




segunda-feira, 25 de março de 2019

As palavras



As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes. Algumas palavras sugam-nos, não nos largam: são como garras: vêm nos livros, nos jornais, nas mensagens publicitárias, nos rótulos dos filmes, nas cartas e nos cartazes. As palavras aconselham, sugerem, insinuam, intimidam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas ou ácidas. O mundo gira sobre palavras lubrificadas com azeite de paciência. Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em paz e em harmonia com suas contrárias e inimigas. Por isso a pessoas fazem o contrário do que pensam, crendo pensar o que fazem. Há muitas palavras.

E há os discursos, que são palavras apoiadas umas em outras, em equilíbrio instável graças a uma sintaxe precária, finalizadas com chave de ouro: “Graças. Digo”. Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem e cerram sessões, se lançam cortinas de fumo ou se dispõem cortinas de veludo. São brindes, orações, conferências e colóquios. Por meio dos discursos se transmitem louvores, agradecimentos, programas e fantasias. E logo as palavras dos discursos aparecem postas em papéis, pintadas em tinta de impressão − e por essa via entram na imortalidade do Verbo.

Ao lado de Sócrates, o presidente da junta domina o discurso que abriu a torneira da fonte. E fluem as palavras, tão fluidas como o “precioso líquido”. Fluem interminavelmente, inundam o solo, chegam até as joelhos, à cintura, a os ombros, ao colo. É o dilúvio universal, um coro desarmado que brota de milhares de bocas. A terra segue seu caminho envolta em um clamor de loucos, a gritos, a berros, envolta também em um murmúrio manso represado e conciliador. De todo há no coro: tenores e contraltos, cantantes baixos, sopranos de dó de peito fácil, barítonos acolchoados, contraltos de voz-surpresa. Nos intervalos se ouve o ponto. E todo isso aturde as estrelas e perturbam as comunicações, como as tempestades solares.

Porque as palavras deixaram de comunicar. Cada palavra é dita para que não se ouça outra palavra. A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se. A palavra não responde nem pergunta: amassa. A palavra é a erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra não mostra. A palavra disfarça.

Daí que seja urgente podar as palavras para que a plantação se converta em colheita. Daí que as palavras sejam instrumento de morte − ou de salvação. Daí que a palavra só valha o que valer o silêncio do ato.

Há, também, o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o joio. Mas só o trigo dá pão.

Do livro “Deste Mundo e do Outro, de José Saramago.





Louvor do Aprender

(Aprende-se vivendo e vive-se aprendendo)

  
Aprende as coisas simples!
Para aqueles cujo tempo chegou,
Nunca é tarde!...
Aprende o a b c. É pouco!
Mas aprende-o!
E não te enfades!
Tens de saber tudo!
Tens de tomar o comando! 
                            
Aprende, homem do asilo!
Aprende, homem na prisão!
Aprende, mulher na cozinha!
Aprende, sexagenária!
Frequenta a escola, homem sem abrigo!
Procura saber tudo,
Tu que tens frio,
Pega no livro, faminto:
O livro é uma arma!
Tens de tomar o comando!

Companheiro,
Não tenhas medo de fazer perguntas
E não te deixes enganar!
Vai tu próprio ver!
Tudo aquilo que não aprendeste por ti
Não o sabes!
Verifica a conta,
És tu quem a paga.
Aponta cada parcela
E pergunta: o que faz isto aqui?
Tens de tomar o comando!

Bertold Brecht, in Poemas e Canções, Tradução de Paulo Quintela. 


domingo, 24 de março de 2019

O laço de fita

Castro Alves


Não sabes, criança? Estou louco de amores...
Prendi meus afetos, formosa Pepita.
Mas onde? No templo, no espaço, nas névoas?
Não rias, prendi-me
                              Num laço de fita.

Na selva sombria de tuas madeixas,
Nos negros cabelos da moça bonita,
Fingindo a serpente qu'enlaça a folhagem,
Formoso enroscava-se
                              O laço de fita.

Meu ser, que voava nas luzes da festa,
Qual pássaro bravo, que os ares agita,
Eu vi de repente cativo, submisso
Rolar prisioneiro
                              Num laço de fita.

E agora enleada na tênue cadeia
Debalde minh'alma se embate, se irrita...
O braço, que rompe cadeias de ferro,
Não quebra teus elos,
                              Ó laço de fita!

Meu Deusl As falenas têm asas de opala,
Os astros se libram na plaga infinita.
Os anjos repousam nas penas brilhantes...
Mas tu... tens por asas
                              Um laço de fita.

Há pouco voavas na célere valsa,
Na valsa que anseia, que estua e palpita.
Por que é que tremeste? Não eram meus lábios...
Beijava-te apenas...
                              Teu laço de fita.

Mas ai! findo o baile, despindo os adornos
N'alcova onde a vela ciosa... crepita,
Talvez da cadeia libertes as tranças
Mas eu... fico preso
No laço de fita.

Pois bem! Quando um dia na sombra do vale
Abrirem-me a cova... formosa Pepital
Ao menos arranca meus louros da fronte,
E dá-me por c'roa...
Teu laço de fita.

Do livo “Espumas Flutuantes”, 1870.



Diferenças entre Homem e Mulher



Apelidos

Se Adriana, Silvana, Débora e Luciana vão almoçar juntas, elas chamarão umas às outras de Dri, Sil, Dé e Lu.

Se Leandro, Carlos, Roberto e João saem juntos, eles afetuosamente se referirão uns aos outros como Gordo, Cabeção, Rato e Negão.

Comendo fora

Quando a conta chega, Paulo, Carlos, Roberto e João jogam na mesa R$ 20,00 cada um, mesmo sendo a conta apenas R$ 32,50. Nenhum deles terá trocado e nenhum vai ao menos admitir que queira troco − logo o troco será convertido em saideiras.

Quando as garotas recebem sua conta, aparecem calculadoras de bolso e todas procuram pelas moedinhas exatas dentro da bolsa.

Filmes

A ideia que uma mulher faz de um bom filme é aquele em que uma só pessoa morre bem devagarzinho, de preferência por amor.

Um homem considera um bom filme aquele em que muita gente morre bem depressa, se possível com balas de metralhadora ou em grandes explosões.

Dinheiro

Um homem pagará R$ 2,00 por um item que vale R$ 1, 00 − mas que ele precisa.

Uma mulher pagará R$ 1,00 por um item que vale R$ 2,00 − mas que ela não precisa.

Banheiros

Um homem tem seis itens em seu banheiro: escova de dente, pente, espuma de barbear, barbeador, sabonete e uma toalha de hotel.

A quantidade média de itens em um banheiro feminino é de 756. E um homem não consegue identificar a maioria deles.

Discussões

Uma mulher tem a última palavra em qualquer discussão.

Por definição, qualquer coisa que um homem disser depois disso, já é o começo de uma outra discussão.

Futuro

Uma mulher se preocupa com o futuro até conseguir um marido.

Um homem nunca se preocupa com o futuro até que consiga uma esposa.

Mudanças

Uma mulher casa-se com um homem esperando que ele mude, mas ele não muda.

Um homem casa-se com uma mulher esperando que ela não mude, mas ela muda.

Dividindo

Uma mulher dividirá seus pensamentos e sentimentos mais profundos com um completo estranho que lhe dê atenção.

Um homem só dividirá seus pensamentos e sentimentos mais profundos quando questionado por um advogado manhoso, sob juramento, e mesmo assim, apenas quando isso puder diminuir a sua pena.

Amizade

A mulher encontra com outra na rua: “Nossa como você está linda!”. Quando viram as costas, vem o comentário: “Nossa como ela está gorda!”.

Um homem encontra com outro na rua: “Fala, seu gordo careca e bichona!”. Quando viram as costas, vem o comentário: “Pô, esse cara, além de espada, é gente fina!”.



Curiosidades históricas Sul-Rio-Grandenses

Coruja Neto
(Antônio Álvares Pereira)

Bento Manoel Ribeiro

É geralmente sabido que Bento Manoel Ribeiro, um dos chefes revolucionários de 35, passou-se logo para os legais, voltando, pouco depois, às fileiras republicanas, para mais tarde, tornar a incorporar-se no exército monárquico. Como é natural, o seu primeiro bandeamento provocou indignação entre os republicanos que sentenciaram:

Pode um altivo humilhar-se,
pode um teimoso ceder,
pode um pobre enriquecer,
pode um pagão batizar,
pode um avaro prestar-se,
um lascivo confessar-se,
pode um mouro ser cristão,
um arrependido salvar-se.
Tudo pode ter perdão,
só o Bento Manoel - não!

Correio do Povo, 16/10/1910.

Honra farroupilha

De uma feita, durante a memorável jornada de 35, uma escolta republicana aprisionou diversos imperiais, em Dores de Camaquã. Iam ser fuzilados, quando os incumbidos do cortejo descobrem que um dos prisioneiros trazia uma guaiaca cheia de onças de ouro, sendo logo prevenido o chefe da escolta, Amaral Ferrador. Incontinenti, deu Amaral esta contra-ordem: “Soltem-nos; não quero que se diga que os republicanos os mataram para roubar.”

E assim eram todos os heróis que escreveram a gloriosa epopeia dos farrapos.

Correio do Povo, 16/10/1910

Abolicionista

Antônio José Gonçalves Chaves, rico charqueador de Pelotas, homem muito instruído e empreendedor, foi o primeiro abolicionista que houve no Rio Grande do Sul. E o Noticiador, que se publicou de 1832 a 1835, foi o primeiro jornal rio-grandense que se declarou abolicionista. Em 1844, por ocasião da Assembleia Constituinte da República Rio-Grandense, o major José Maria de Mattos propôs que fosse abolida a escravatura.

Correio do Povo, 5/10/1910

Primeira sociedade científica

Sob a presidência do Dr. Manoel José de Campos, barão do Guaíba, instalou, a 8 de setembro de 1850, nesta capital, a Associação Médico Farmacêutica, que foi a primeira sociedade científica criada no Estado. Seguiram-se-lhe: o Instituto Histórico e Geográfico Rio-Grandense, instalado a 7 de setembro de 1853, por iniciativa do Dr. Manoel Pereira Ubatuba; e a 16 de fevereiro de 1860 o Instituto Histórico da Província de São Pedro, do qual foi primeiro presidente o então barão de Porto Alegre.

Correio do Povo, 25/9/1910

Um edifício chamado Silhueta

A Silhueta

João Saldanha*

(...)

Um dia, a esquina inteira se mobilizou. Foi quando um edifício ali perto foi apelidado de “Edifício Silhueta”. Já era mais de meia-noite quando chegou na roda um garoto, com os olhos maiores do que um pires e disse, gaguejando: “Ali naquele edifício tem um casal... eu acho. Estão lá dentro, mas se vê tudo da rua.” Era sábado e a roda estava imensa. Até dividida em duas ou três rodinhas de papo. Um fundador do Botafogo, um dirigente atuante do Fluminense, ex-jogadores do Flamengo, do Botafogo, e do Vasco, médicos, advogados, dentistas - dentistas então sempre estavam uns três ou quatro - estudantes de várias escolas, comerciários e comerciantes, todo mundo. Casa cheia. Todos correram na direção que o tal garoto indicara. A Avenida Copacabana encheu. Veio o ônibus e teve de parar. Passar como? O chofer ia entrar na bronca, mas um dos organizadores da pequena multidão, que já estava se acotovelando, com gestos bem significativos, fez ver ao chofer do ônibus o que se passava. O chofer entendeu logo e ficou na paquera do lance. Algum passageiro estrilou, mas ele, sem tirar os olhos do lance, mostrou o que se passava. E o casal mandando brasa. A porta estava fechada. Mas a luz do saguão ou hall de entrada estava acesa. Bem acesa e forte. A porta era vidro fosco. Ora, a luz por trás do casal transmitia para a turma da rua a mais perfeita silhueta que se poderia desejar. E foi juntando gente. Um gaiato quis fazer onda, mas um tremendo e severo “psssssiu” lhe tapou a boca. Parecia uma tropa de comandos ou de assalto pretendendo pegar o inimigo desprevenido. Com o ônibus parado e mal parado, os carros iam parando e as indicações sempre diretas apontando para o evento e pedindo silêncio. Todos compreendiam logo e até casais que iam passando paravam para olhar a cena inédita. De repente, o casal lá de dentro parou rapidamente. A mulher, que estava sempre abaixada, meio de quatro, se arrumou depressa. A rua ficou no mais profundo silêncio. Um segurando o outro para ninguém invadir o lugar privilegiado de alguém que chegara primeiro. Mas não era nada de mais. O elevador fora acionado, o casal atuante teve de parar e de dentro do prédio saiu um cidadão. Uma vaia chegou a ser ensaiada, mas o “sinal” de silêncio foi mais forte. O cara saiu, ficou meio atônito de ver a rua tão cheia. E, ante os gestos e vozes surdas de “cai fora... cai fora...”, olhou para trás e entendeu tudo. Procurou se ajeitar ali pela frente, mais foi energicamente barrado. Arrumou um lugar mais atrás e toda aquela pressa da saída do edifício desapareceu. O casal lá dentro engrenou de novo. Do começo. Fizeram tudo e de repente terminou. Um “oh... oh!” se fez ouvir. O cara do casal se arrumou, ela também. Ele deu um beijinho e veio para a rua. Mal a porta se abriu, uma tremenda ovação. Bateram palmas e saudaram o cidadão. Ele, meio aturdido, tomou a rua e se mandou, sumindo na primeira esquina da Rua Miguel Lemos em direção à Rua Barata Ribeiro. Desapareceu na noite e o papo bem entusiasmado voltou para a esquina. O ônibus foi embora e os carros puderam passar.

*******


João Saldanha era gaúcho e nasceu em 1917 na cidade de Alegrete. Jornalista combativo, treinador, apaixonado pelo futebol, conseguiu unir o Brasil − então politicamente dividido − em 1969, por ocasião das eliminatórias para aquela que seria a Copa do tricampeonato no México. De temperamento difícil, extremamente corajoso, fez muitos inimigos na vida. Mas todos admiravam aquele homem (ainda que muitas vezes não o perdoando pelas aventuras que dizia - e acreditava - ter vivido) que assistiu a todas as Copas do Mundo de futebol; que, como jornalista, cobriu a guerra da Coreia; que desembarcou na Normandia com Montgomery e que fez a grande marcha com Mao Tse-Tung. Faleceu no dia 12 de julho de 1990, durante a Copa do Mundo. O texto acima, parte do total, foi extraído do livro “Futebol e Outras Histórias”, edição especial para a agência de publicidade MPM, São Paulo, 1988, pág. 139.

sábado, 23 de março de 2019

Dona Zilá e sua pinacoteca



Zilá era proprietária de uma pensão de mulheres na Rua Gonçalves Dias, no Bairro Menino Deus, em Porto Alegre.

Existem pessoas que bebem e ficam alegres, expansivas. Outras entram em depressão ou mostram o lado perverso de sua personalidade, ficando rudes e violentas. O álcool cria um vasto espectro de comportamentos.

Contudo Zilá tinha uma característica singular. Enquanto estava fazendo negócio em sua pensão, mostrava uma incrível seriedade. Depois da uma manhã, dava por encerrada suas atividades de cafetina.

Então, sentava-se numa mesa e o garçom, automaticamente, colocava sobre a mesa a garrafa de seu uísque predileto. Em questão de uns quarenta minutos a garrafa já estava pela metade. Era nesse momento que dela se apoderava um brutal senso estético, embora ela mesma não soubesse o que era isso.

Era sistemática a sua conduta. Ficava bêbada e chamava sempre o Dudu* para acompanhá-la e dar opinião sobre seus quadros, na verdade, gravuras de um mau gosto atroz.

Uma delas mostrava um beduíno acompanhado de duas mulheres vestidas com véus. Essa gravura era a sua preferida. Ao lado de Dudu, ela iniciava uma análise sobre as cores que o pintor havia usado. Depois, passava a analisar as figuras. Era sempre a mesma coisa, sempre as mesmas perguntas:

‒ Dudu, você não acha que esse beduíno está demonstrando uma certa tristeza? Olha a expressão de seus olhos e maneira que está segurando o cálice.

Dudu, enfastiado com as mesmas perguntas, havia quase um ano, resolveu gozar com a cara da cafetina.

‒ Olha, dona Zilá, cada pessoa tem sua maneira própria de sentir. Na verdade, penso que tudo isso não passa de uma questão de blefarite...

‒ Blefarite?

‒ Sim, blefarite, dona Zilá.

Zilá não perdeu a postura, deu mais um longo gole no seu uísque predileto e respondeu firme:

‒ Blefarite? É, pode ser...

*****

*Dudu: Eduardo Prates da Cunha, aposentado, residia em Porto Alegre.

... E para quem não sabe, blefarite é uma inflamação de pálpebra e não tem nada a ver com arte.




sexta-feira, 22 de março de 2019

Teatro do absurdíssimo



Cenário: Mesa de Restaurante.

Cena: Dois amigos sentados, doutor Doctor e senhor Monsieur.

Ao fundo, gerente e garçom.

Doutor Doctor − Garçom, a conta!

Garçom − (Aproximando-se.) Mas doutor! O senhor já pagou a conta.

Doutor Doctor − Não discuta. O freguês tem sempre razão! Traga a conta que eu quero pagar.

(Garçom afasta-se.)

Doutor Doctor − (Ao seu amigo, senhor Monsieur.) Esses garçons andam terríveis!

(Garçom volta novamente com a conta.)

Garçom − Aqui está, doutor.

Doutor Doctor − (Pagando.)Toma. Pode guardar o troco.

Senhor Monsieur − Vamos embora.

Doutor Doctor − Vamos sim. Antes deixa só eu pagar a conta.

(Chama.) − Garçom!

Garçom − (Aproximando-se.) Pois não, doutor.

Doutor Doctor − A conta, por favor.

Garçom − Mas doutor! O senhor pagou duas vezes!

Doutor Doctor − Você quer discutir comigo, é?! Seu malcriado! Traga logo a conta que eu quero pagar?

Garçom  − (Assustado.) Trago sim, doutor.

Doutor Doctor − Eu não estou dizendo? Esse serviço anda péssimo.

(Garçom volta novamente com a conta.)

Garçom − (Meio com medo.) Está aqui.

Doutor Doctor − (Pagando mais uma vez.) E não se esqueça de guardar o troco.

(Garçom vai se afastando, quando doutor Doctor chama-o de novo)

Doutor Doctor − Ah, garçom. E não se esqueça de trazer a conta.

Garçom − Por favor, doutor! O senhor já pagou mais de três vezes!!

Doutor Doctor − (Levanta-se e vai saindo furioso.) É um absurdo ter que discutir com este garçom! Nunca mais eu ponho os pés neste restaurante!!! (Sai.)

Garçom − Mas eu não entendo… (Confuso.)

(Aproxima-se o gerente e pergunta)

Gerente −Afinal de contas, o que foi que houve?

Senhor Monsieur − (Que continua sentado.) Nada, não. É uma mania que o meu amigo tem de ficar pagando a conta. Toda vez que eu saio para almoçar com ele é a mesma coisa. Quer pagar sempre. Mas agora pra mim chega. Hoje quem paga sou eu. Garçom, a conta!

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(Do livro “O Astronauta sem Regime”, de Jô Soares)