sexta-feira, 31 de maio de 2019

Preocupações desiguais


Romance Policial

Cláudio Vieira
  
  
O delegado estava uma pilha de nervos. A situação do Dr. Malagueta − um dos executivos mais respeitados do país − deixara-o com os nervos à flor da pele. Telefonava de 10 em 10 minutos para saber do estado do notável.

− Alô? É da Clínica Luxuria's? Por gentileza, quero falar com o acompanhante do Dr. Malagueta, na suíte presidencial.

A telefonista queria saber quem era, o que deixou o delegado enfezado:

− Aqui é o Dr. Prestes Pestanna. Faça a comunicação imediatamente sob a pena de estar obstruindo os trabalhos da polícia!

Na suíte, o acompanhante atendeu:

− Comandante Perácio falando.

− Olá, comandante, aqui é o delegado Prestes Pestanna.

− De novo?! − irritou-se o chefe de polícia da capital.

− Perdoe-me, comandante. Mas toda a polícia está preocupada com o estado emocional do Dr. Malagueta. Como ele está se recuperando?

− Muito bem, delegado. De vez em quando ainda pensa nos tiros que deu, mas isso passa.

− Sei que o senhor está fazendo o possível e o impossível. Diga-me: o Dr. Malagueta ainda está no soro, sob efeito de sedativos?

− Não, hoje de manhã já apresentou sinais de melhora.

− Saiu do soro?

− Saiu da suíte, delegado!

− Uau! Benza Deus!

O comandante eufórico:

− Hoje cedo, nadou na piscina olímpica; depois fez uma boa caminhada e agora está treinando golfe.

− Que maravilha! Pelo visto, está superando o trauma com muita facilidade.

O comandante, orgulhoso do notável:

− O senhor precisa ver. Já está ouvindo música...

− ... de fossa?! − interrompeu Prestes Pestanna.

− Nada! Ouviu pagode, rock, músicas bem alegres. Deu até uma sambadinha.

− Como o Barrichelo?

O comandante riu:

− Não, ele leva mais jeito. Mas essa estada aqui está lhe fazendo muito bem. Vai sair uns 30 anos mais moço.

− Deus o ouça, comandante. Dr. Malagueta é uma pessoa muito querida.

− E importante, meu bom delegado. Um dos homens mais íntegros desse país.

− Ora, tão íntegro que não precisa fugir, como tantos outros que existem por aí. Mas, vamos falar de coisas boas... o que ele vai fazer hoje à tarde? Fisioterapia?

− Acho que esqui aquático.

− Que vitalidade, meu comandante!

No meio da conversa, um detetive bateu na porta do gabinete e interrompeu o delegado:

− Dá licença, doutor?

Dr. Prestes Pestanna pediu licença ao comandante, abafou o fone e virou-se para o subalterno:

− Fala, Valdir.

− É o seguinte: pegamos o pedreiro que encheu a mulher de tiros.

− Boa! Enfia a porrada no filho da p... e joga ele no ninho de ratos.

− Mas ele já confessou o crime, doutor.

− Não tem problema, Valdir. Agora ele vai confessar os detalhes.



quinta-feira, 30 de maio de 2019

Blau, o vaqueano

João Simões Lopes Neto


Patrício, apresento-te Blau, o vaqueano.

− Eu tenho cruzado o nosso Estado em caprichoso ziguezigue. Já senti a ardentia das areias desoladas do litoral; já me recreei nas encantadoras ilhas da lagoa Mirim; fatiguei-me na extensão da coxilha de Santana; molhei as mãos no soberbo Uruguai; tive o estremecimento do medo nas ásperas penedias do Caverá; já colhi malmequeres nas planícies do Saicã, oscilei sobre as águas grandes do Ibicuí; palmilhei os quatro ângulos da derrocada fortaleza de Santa Tecla, pousei em São Gabriel, a forja rebrilhante que tantas espadas valorosas temperou, e, arrastado no turbilhão das máquinas possantes, corri pelas paragens magníficas de Tupanceretã, o nome doce, que no lábio ingênuo dos caboclos quer dizer os campos onde repousou a mãe de Deus...

− Saudei a graciosa Santa Maria, fagueira e tranquila na encosta da serra, emergindo do verde-negro da montanha copada o casario, branco, como um fantástico algodoal em explosão de casulos.

− Subi aos extremos do Passo Fundo, deambulei para os cumes da Lagoa Vermelha, retrovim para a merencória Soledade, flor do deserto, alma risonha no silêncio dos ecos do mundo; cortei um formigueiro humano na zona colonial.

− Da digressão longa e demorada, feita em etapas de datas diferentes, estes olhos trazem ainda a impressão vivaz e maravilhosa da grandeza, da uberdade, da hospitalidade.

− Vi a colmeia e o curral; vi o pomar e o rebanho, vi a seara e as manufaturas; vi a serra, os rios, a campina e as cidades; e dos rostos e das auroras, de pássaros e de crianças, dos sulcos do arado, das águas e de tudo, estes olhos, pobres olhos condenados à morte, ao desaparecimento, guardarão na retina até o último milésimo da luz, a impressão da visão sublimada e consoladora: e o coração, quando faltar ao ritmo, arfará num último esto para que a raça que se está formando, aquilate, ame e glorifique os lugares e os homens dos nossos tempos heróicos, pela integração da Pátria comum, agora abençoada na paz.

E, por circunstâncias de caráter pessoal, decorrentes da amizade e da confiança, sucedeu que foi meu constante guia. e segundo o benquisto tapejara Blau Nunes, desempenado arcabouço de oitenta e oito anos, todos os dentes, vista aguda e ouvido fino, mantendo o seu aprumo de furriel farroupilha, que foi, de Bento Gonçalves, e de marinheiro improvisado, em que deu baixa, ferido, de Tamandaré.

Fazia-me ele a impressão de um perene tarumã verdejante, rijo para o machado e para o raio, e abrigando dentro do tronco cernoso enxames de abelhas, nos galhos ninhos de pombas...

Genuíno tipo − crioulo − rio-grandense (hoje tão modificado), era Blau o guasca sadio, a um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria e na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável; e dotado de uma memória de rara nitidez brilhando através de imaginosa e encantadora loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco.

E, do trotar sobre tantíssimos rumos; das pousadas pelas estâncias; dos fogões a que se aqueceu; dos ranchos em que cantou, dos povoados que atravessou; das cousas que ele compreendia e das que eram-lho vedadas ao singelo entendimento; do pelo-a-pelo com os homens, das erosões da morte e das eclosões da vida, entre o Blau − moço, militar − e o Blau − velho, paisano −, ficou estendida uma longa estrada semeada de recordações − casos, dizia − , que de vez em quando o vaqueano recontava, como quem estende, ao sol, para arejar, roupas guardadas ao fundo de uma arca.

Querido digno velho!

Saudoso Blau!

Patrício, escuta-o.


Não é à toa que Contos Gauchescos faz parte da lista de leituras obrigatórias para o vestibular da UFRGS nos últimos anos. Ele ali está na justa companhia de José Saramago (História do Cerco de Lisboa), Guimarães Rosa (Manuelzão e Miguilim) e de outros. E de outros menores, deveria dizer. Claro, a lista da UFRGS não é garantia de qualidade − por exemplo, lá não estão Érico Veríssimo nem Dyonélio Machado –, mas serve como comprovação de que o pequeno volume de 19 contos narrados por Blau Nunes está bem vivo.

Contos Gauchescos (1912) é o segundo livro de João Simões Lopes Neto (1865-1916), que também escreveu Cancioneiro Guasca (1910), Lendas do Sul (1913) e Casos do Romualdo (1914). O autor viveu 51 anos e publicou apenas quatro livros. Talvez sejam muitos, se considerarmos a colorida vida do autor. 

(...)

A primeira edição de Contos Gauchescos foi publicada em 1912. Se o ano é este, a data exata da publicação parece ter sido perdida. Na primeira página do volume é feita a apresentação do vaqueano Blau Nunes, que o autor afirma ter sido seu guia numa longa viagem pelo interior do Rio Grande do Sul.

Publicado em 25/02/2012 no Sul21

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Benjamim de Oliveira, o primeiro palhaço negro do Brasil



Benjamin Chaves, (Pará de Minas, 11 de junho de 1870Rio de Janeiro, 30 de maio de 1954) mais conhecido como Benjamin de Oliveira, foi um artista, compositor, cantor, ator e palhaço de circo brasileiro. Ele é mais conhecido por ser o primeiro palhaço negro do Brasil. Além de ser o idealizador e criador do primeiro circo-teatro. O sobrenome “Oliveira” veio após se inspirar no nome de seu instrutor, Severino de Oliveira.

Negro forro, sua alforria e de seus irmãos veio após nascerem, já que Leandra era considerada escrava de estimação. Seu pai, trabalhava buscando escravos fugitivos, que deixavam o trabalho da fazenda para terem liberdade.

Aos 12 anos, Benjamin fugiu de casa ainda criança com a “troupe” do circo Sotero, que passava na cidade, onde atuou como trapezista e acrobata. Três anos após, ele decidiu escapar, já que era espancado pelo dono do circo. Já fora do Sotero, ele encontrou com ciganos que queriam lhe vender, fazendo com que ele escape novamente. Nesta fuga, ele acabou encontrando com um fazendeiro, que alegou que ele seria um escravo fugitivo. Benjamin para ser liberado teve que fazer algumas das acrobacias que ele havia aprendido no circo.

Depois de passar por vários outros circos, ele substituiu o palhaço titular do circo onde trabalhava que havia adoecido e que não havia ninguém para substituí-lo. Na sua primeira apresentação o público não gostou de sua apresentação, rejeitando-o. Depois, trabalhou em outros circos passando por várias cidades, em especial no circo Caçamba no Rio de Janeiro onde o então presidente da república Marechal Floriano Peixoto estava presente. Surpreso com a apresentação de Benjamin e com a ideia de Manuel Gomes – dono do circo; o presidente transferiu o circo da que era situado na favela para a frente do Palácio do Itamaraty, na Praça da República. A partir dali, os materiais usados pela trupe eram transportados pelo Exército Brasileiro.

Escreveu diversas peças de sucesso, entre as quais, O Diabo e o Chico, Vingança Operária, Matutos na Cidade e A Noiva do Sargento. Atuou também como cantor, nos entreatos, executando ao violão lundus, chulas e modinhas, principalmente as de seu amigo Catulo da Paixão Cearense.

Em agosto de 1908, protagonizou no papel de Peri a peça O Guarani em que foi filmado no circo Circo Spinelli e lançado sob o nome Os Guaranis, inspirado na obra de José de Alencar. O filme foi a primeira filmagem de um filme de romance na época e foi lançado pela Photo-Cinematographica Brasileira. Em 1921, criou a revista Sai Despacho!.

Em 1941, ele havia pedido auxílio de passagens e transporte para 46 pessoas para uma excursão em Belo Horizonte, Minas Gerais. O pedido foi feito em dois meses sendo negado em todos os três pedidos. Em 1947, devido a pressão feita pelos jornalistas a Câmara dos Deputados, ele passou a receber pensão do governo.

Em entrevista a Brício de Abreu, em 1947, descreveu o circo em que trabalhou, por volta de 1885:

“Em Mococa, encontrei um grupo trabalhando. O chefe do elenco se chamava Jayme Pedro Adayme. Era um norte-americano (...) trabalhávamos em ranchos de taipa, cobertos com panos velhos. Cada vez que mudávamos de cidade, vendíamos a parte da madeira e levávamos apenas a parte do pano em lombos de burro (...) Andávamos por terra de cidade em cidade, de vila em vila. Raramente conseguíamos um carro de boi. Quase sempre em lombo de burro.”

Benjamin acabou falecendo em 3 de maio de 1954 no Rio de janeiro, RJ. 

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.


Alegoria feita como lembranças do palhaço-cantor
Benjamim de Oliveira, cercado por quatro tipos por ele criados.


Benjamim de Oliveira, o primeiro palhaço negro do Brasil, será tema do G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro para o Carnaval de 2020, no Rio de Janeiro.


Coisas do carnaval


Ary Barroso

Eu encontrei uma havaiana branca
de braço com um palhaço, lá na Galeria.
Eu vi uma holandesa, que era uma beleza,
sambando com um careca tipo carestia.

Fazendo chope duplo na barraca,
eu vi uma sultana mesmo da fuzarca,
tendo por companheiro um velho gaiteiro,
breve contra a folia.

Passou por mim uma cigana rara,
que era um desafio ao meu comportamento,
adiante se encontraram ela e o complemento,
ele fantasiado com jeitão de arara.

Mas o que me fez vir água na boca,
foi essa coisa louca que passo a contar.
Eu vi um morenão ali no Serrador,
Que taco! Um amor!
A tal morena era um desacato,
“It” ali era mato.

Pulava, sambava, gingava e desacatava.
Quando falei com ela,
meu Deus, que decepção!
A tal morena se denominava,
o quê?
“Quincas Peroba Xisto d'Assunção”.
(Breque)
Ai que bruta confusão!
Aaaaaaaaa!!!

Ari Barroso aproveitou a folia de 1942 para escrever uma das suas melhores e mais bem-humoradas letras ao compor o samba Coisa do Carnaval, gravado em março pelo conjunto Quatro Ases e um Coringa. Os versos contam a história, tantas vezes repetida depois, do sujeito que se encanta pela foliona fantasiada e, em seguida, descobre que se trata de um travesti.


P.S. A gravação original dessa música “Coisas do Carnaval”, é de 1942 com Quatro Ases e um Coringa, disponível na internet. Há, também, uma gravação dessa música com o Trio Irakitan.

Ari Barroso morreu há 55 anos, em 9 de fevereiro de 1964, em pleno carnaval, no dia em que o Império Serrano o homenageava com o enredo (e o grande samba de Silas de Oliveira) Aquarela brasileira.



terça-feira, 28 de maio de 2019

Luiz Carlos da Vila, o poeta do samba



Foto O Globo

27.07.1949 - 20.10.2008

Luiz Carlos da Vila é da Vila da Penha e de Vila Isabel. Na primeira, residiu, e na de Noel e Martinho, circulou, cantou seus sambas e acabou ajudando a escola de samba a ganhar o campeonato de 1988 com o memorável “Kizomba – a festa da raça”. Então, ponha-se o plural, é Luiz Carlos das Vilas, como ele gosta de falar.

A morte do compositor

O corpo do sambista Luiz Carlos da Vila foi enterrado no início da tarde desta terça-feira, 21 de outubro de 2008, no Cemitério de Inhaúma, no Rio, ao som de suas principais músicas. Cerca de 300 pessoas acompanharam a cerimônia e cantaram grandes sucessos do compositor, como “O show tem que continuar” e “Kizomba, a festa da raça”. Luiz Carlos morreu na segunda de manhã, de complicações decorrentes de um câncer, no Hospital do Andaraí.

Vários amigos e sambistas estiveram no velório de Luiz Carlos, realizado na quadra da escola de samba de Vila Isabel. Entre eles, seus parceiros Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz e Beth Carvalho. A despedida do músico mereceu descontração, com direito a mesa de bar e cerveja para relembrar o grande sambista.

Luiz Carlos da Vila estava internado há 40 dias. O sambista, de 59 anos, lutava contra um câncer no intestino e já havia sido operado em 2002. Seu famoso samba “Kizomba - A festa da raça” deu o primeiro título para a Vila Isabel no desfile de escolas de samba cariocas. Entre suas músicas conhecidas estão “Além da razão”, “Por um dia de graça”, “Doce refúgio” e “O show tem que continuar”.

Luiz Carlos da Vila, conhecido como o Poeta do Samba, era casado e tinha uma filha. Ele nasceu no bairro de Ramos, mas morou grande parte da vida em Vila da Penha, de onde tirou o sobrenome artístico. Ele também era assíduo frequentador da escola de samba de Vila Isabel. O cantor e compositor chegou a compor um samba para concorrer para o Carnaval 2009, junto com os parceiros Ivanísia, Acyr Marques e Alessandro Silva. A composição chegou à final, na última sexta-feira, mas não se sagrou campeã.

Ele estudou acordeom e violão, e na década de 70 ia aos ensaios do bloco Cacique de Ramos, onde tocava e apresentava seus sambas. Sua admiração por Candeia rendeu em 1998 um disco, “A luz do vencedor”, pela CPC-Umes, dedicado exclusivamente à obra do compositor.

Músicas de Luiz Carlos da Vila

“O show tem que continuar”

(de Arlindo Cruz / Sombrinha / Luiz Carlos da Vila)

O teu choro já não toca
Meu bandolim,
Diz que minha voz sufoca
Teu violão,
Afrouxaram-se as cordas
E assim desafina
E pobre das rimas
Da nossa canção.
Hoje somos folha morta.
Metais em surdina.
Fechada a cortina,
Vazio o salão.

Se os duetos não se encontram mais
E os solos perderam emoção.
Se acabou o gás
Pra cantar o mais simples refrão.
Se a gente nota,
Que uma só nota
Já nos esgota
O show perde a razão.

Mas iremos achar o tom,
Um acorde com um lindo som
E fazer com que fique bom
Outra vez, o nosso cantar.
E a gente vai ser feliz,
Olha nós outra vez no ar,
O show tem que continuar...

Nós iremos até Paris,
Arrasar no Olímpia,
O show tem que continuar...

Olha o povo pedindo bis.
Os ingressos vão se esgotar.
O show tem que continuar...

Todo mundo que hoje diz,
Acabou vai se admirar,
Nosso amor vai continuar...

A colher de prata



O padre Antoninho era uma figura muito querida no colégio religioso onde ele lecionava. Pessoa carismática, comunicativa, sempre, além das excelentes aulas que ministrava aos alunos, dava bons conselhos de bondade e dedicação aos ensinamentos cristãos.

Ele era um elemento muito participativo na comunidade escolar, interagindo com pais e alunos sempre que fosse solicitado. Ia a batizados de filhos, cujos pais o convidavam, festas de aniversários, comunhão e formaturas, a tudo que fosse pelo bem de sua comunidade, ele comparecia com o maior prazer.

Figura baixa, andando quase curvado, cabelos ralos e brancos, beirando os 80 anos. Apesar da idade, era ágil, esperto, e tinha uma vitalidade que contagiava a todos, pela maneira com que participava de todos os acontecimentos estudantis aos quais quisessem sua presença.

Um dia, foi convidado a comparecer a uma festa de formatura de um aluno cujos pais pertenciam a melhor sociedade de sua cidade, no Sul do Brasil. Casa grande, de arquitetura moderna e de muito bom gosto, com um jardim frontal imenso, com lagos e um belo chafariz.

Ao chegar à mansão, foi muito bem recebido pelos familiares mais chegados do anfitrião. Após os drinques iniciais, foi levado a um salão com uma mesa imensa, com louças da melhor qualidade e talheres de prata, herança de família, pertencente aos ancestrais ilustres do dono da casa.

Após o jantar, houve discursos, drinques e confraternização entre todos os participantes da festa. No final do fino jantar, Padre Antoninho foi levado ao colégio onde lecionava, recolhendo-se ao seu modesto aposento na escola onde ele lecionava há mais de 40 anos.

Na casa, porém, alguma coisa não estava certa. Ao recolherem as louças, guardar a comida que sobrou, lavar os copos, foi dada a falta de um talher: uma colher de prata. Fato que nunca ocorreu nas festas daquela família. Constrangimento geral, pois a única pessoa fora da família era justamente o padre Antoninho. A família, então, a contragosto, resolveu deixar as coisas por isso mesmo, mas não esqueceu o fato.

Um ano depois, na formatura de outro filho do casal, por solicitação deste formando, convidaram outra vez o padre Antoninho.

Depois do jantar, pelo efeito dos vinhos e licores, o pai do aluno, muito delicadamente, tocou no assunto:

− Padre Antoninho, por uma causa o senhor não “pegou”, por engano, uma colher de prata depois da festa do ano passado?

Para espanto do anfitrião, padre Antoninho, com a maior calma do mundo, respondeu, com convicção:

− Peguei sim, e vou mostrar-lhes onde foi que a coloquei.

E para espanto geral, padre Antoninho foi até a estante de livros, retirou o mais importante, que era justamente a Bíblia Sagrada, e lá estava a colher de prata, entre as folhas de um livro que, durante um ano, nunca foi aberto pela família.

(NSM)

sábado, 25 de maio de 2019

Histórias de pinturas e pintores



 A morte e o Avarento” (1485-90) é um dos trabalhos mais famosos do pintor holandês Hieronymus Bosch. Assim como a maioria das obras de Bosch, esta carrega um rico repertório simbólico e reflete preocupações moralistas.

A cena é ambientada em um quarto da época e mostra o momento da morte do homem avarento. Mas não apenas isso. O personagem principal mostra-se perturbado, indeciso entre o anjo que aponta em direção a um crucifixo e um demônio que lhe oferece um saco de dinheiro. É seu último momento, a morte com a foice já o espreita.

A pintura encontra-se na National Gallery of Art, em Washington.

Contas a pagar dos Pablos

     
Contam que Pablo Neruda nunca tinha dinheiro nos bolsos. Quando ele acabava de jantar num restaurante, o dono aproximava-se da mesa com a conta, esperançoso e perguntava:

- O senhor vai pagar a conta ou assinar?
  
  
Pablo Picasso fazia uma mímica de procurar dinheiro nos bolsos e acabava assinando a nota, que o dono do restaurante mandava emoldurar e depois vendia como um Picasso autêntico, por muito mais do que o valor do jantar.

Quando a comida estava especialmente boa ou quando o grupo de Picasso era maior, ele, em vez de assinar a nota, fazia uma rápida pomba ou odalisca na toalha, que, mesmo com manchas de molho e vinho, passava a valer uma fortuna. Ou então improvisava uma escultura com rolhas, miolo de pão e palitos e a presenteava ao dono eufórico.

Certa vez, Picasso mandou a empregada fazer o rancho e lhe deu um desenho para pagar a conta. Um bico de pena razoavelmente bem acabado, pois a conta seria grande. Paga a conta, a empregada voltou com as compras e com um desenho horroroso feito num papel de embrulho, que entregou ao seu patrão. Embaixo, estava a assinatura: “Pinot”.

- O Monsieur Pinot, do armazém, mandou.

- Por quê?

- Ele disse que é o troco.

Naquele mesmo dia, Picasso fez questão de passar pelo armazém do Monsieur Pinot e o olhou com admiração. Finalmente, encontrara um ego maior do que o seu.

Nestor Barbosa, um personagem de Porto Alegre.



Um amigo descobriu uma foto de Nestor ainda meninote e, sem o médico saber, foi à Livraria do Globo, combinando com um dos Bertaso publicá-la na Revista do Globo, na seção de registros sociais. Afinal, assim saiu no nº 257 da revista, de 22-8-1939, como se o “interessante e ganancioso menino” não fosse, na ocasião, um homem de quase quarenta anos.

Médico radiologista de renome, bondoso, culto, estimadíssimo pelos amigos e familiares, o Dr. Nestor Barbosa, além de tudo, possuía características bem marcantes: era um grande brincalhão. Tinha como passatempo predileto pregar peças, a cuja montagem dedicava-se com método e paciência, demonstrando sempre inteligência criativa e capacidade de pressentir as reações das pessoas.

Foi, seguramente, o maior trotista telefônico que a cidade conheceu. Mais episódios seus talvez não sejam conhecidos justamente porque buscava, quando possível, o anonimato. Mantinha concorrido instituto de radiologia na sobreloja da galeria Chaves, cujas janelas davam frente par a Rua da Praia.

Em determinada época, antes da Segunda Guerra Mundial, o médico ligava, sempre no meio da tarde, para o velho Costa Dias, português amável, mas exaltado, dono de bem sortido e movimentado armazém na esquina da Rua de Bragança (hoje Marechal Floriano) com Jerônimo Coelho. O comerciante atendia e Nestor, variando a voz, questionava sobre o estoque, demonstrando intenção de compras volumosas; até que, depois de alguns rodeios cada dia mais sofisticados, terminava perguntando se o seu Costa tinha, ou se já chegara, aquela linguiça crioula, bem grossa, especial. O português, zonzo com grande movimento daquela hora, sistematicamente e desavisadamente caía no logro, respondendo que tinha, sim, ou que recebera.

− Então enfia no cu − dizia Nestor. E desligava.

Assim era todos os dias.

No instituto de radiologia, todo fim de tarde, costumavam encontrar-se, nas horas de folga, os médicos da galeria. Numa dessas reuniões, Nestor foi aos poucos dirigindo o papo para os bons fornecedores de carne para churrasco. Conversa vai, conversa vem, confidenciou a um colega presente que a melhor linguiça da cidade era uma crioula, bem grossa, fornecida pelo armazém do Costa Dias. Como o outro demonstrasse interesse em comprá-la, Nestor recomendou-lhe que telefonasse em hora de pouco movimento e falasse com o próprio português, identificando-se antes, pois a freguesia da linguiça era selecionada.

O companheiro agiu exatamente como o sugerido e, sem entender nada, levou tremenda descompostura...

(Do livro “Anedotário da Rua da Praia 1”
de Renato Maciel de Sá Júnior) 

O acaso, a sorte ou o destino no futebol



Eram 31 minutos do segundo tempo do dia 17 de dezembro de 2006 e eu estava no estádio de Yokohama, no Japão. Internacional e Barcelona disputavam a final do Mundial (de clubes). O melhor jogador do Inter, o eterno Fernandão, deixou o campo machucado para a entrada de Adriano Gabiru (um jogador mediano).

Às 21h38min do Japão, 10h38min do Brasil, o capitão Fernandão ergueu a taça de campeão do mundo. Cinco minutos depois de ter entrado, Gabiru anotou o gol da improvável e surpreendente vitória. Tática? Esquema do treinador? Jogada ensaiada?

O acaso, o destino, a sorte, ou seja lá aquilo que quiserem, reservou para Adriano Gabiru a marcação  de um gol que o colocaria na história, junto com o Inter.

Obviamente o outro extremo, deixar tudo por conta do acaso, é impensável, outro equívoco e nem é disso que estamos falando. (...)

(Parte de um texto de Hiltor Mombach, 
Correio do Povo, maio de 2019)


O torcedor do Internacional tem um carinho enorme pelo atacante Adriano Gabiru. Em 2006, na final do Mundial de Clubes diante do Barcelona, foi dele o gol do histórico triunfo por 1 a 0 que garantiu a inédita conquista ao time colorado, superando um rival que tinha nomes como Ronaldinho Gaúcho, Deco, Iniesta, Xavi e Puyol, entre outras estrelas.

Aos 39 anos de idade, o herói do Inter abandonou o futebol profissional no ano de 2017, após rápida passagem pelo modesto Tupi, da cidade de Crissiumal, do Rio Grande do Sul, equipe que disputa a segunda divisão do Campeonato Gaúcho.

Fonte: Esporte - iG

O capitão Fernandão


Fernandão levantando a taça de campeão do mundo


Fernandão nasceu em 18 de março de 1978 e faleceu em 7 de junho de 2014, em um acidente de helicóptero em Goiás.

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Roberto Pellin, o historiador da Tristeza*



Médico aposentado, Roberto Pellin morreu sábado, 09.09.2010, aos 87 anos, vítima de um ataque cardíaco, em Porto Alegre. Formado em História Natural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), lecionou na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde se formou em Medicina.

Natural de Porto Alegre, morou em Santa Maria até 1965, quando voltou para a cidade natal e para o bairro onde nasceu e cresceu, a Tristeza. Quando criança, trabalhou nas pedreiras dos tios para poder estudar e, desde essa época, já dizia que seria médico.

Até pouco tempo, escrevia crônicas no jornal do bairro sobre as famílias e a história da Tristeza, fazendo ele próprio as entrevistas com os moradores. Em 1979, sentiu a necessidade de deixar para as gerações futuras a história do bairro e lançou o livro “Revelando a Tristeza”, que teve seu segundo volume lançado por ele em 1996.

Viúvo de Leontina Silvana Pellin, deixa um filho, José Osvaldo, nora e os netos Rafael e Juliana.

*Não da amargura, mas do bairroTristeza...

Comunidade da Tristeza cria Instituto Roberto Pellin

Em 14 de outubro de 2005, no salão paroquial da Igreja Nossa Senhora das Graças, foi realizado o ato de instalação do Instituto Cultural e Educacional Dr. Roberto Pellin, uma entidade que se destina a resgatar a memória histórica da região. A iniciativa do Centro Comunitário de Desenvolvimento da Tristeza, Pedra Redonda, Vila Assunção e Conceição (CCD) é um antigo anseio dos moradores e homenageia o ilustre médico e morador que resgatou a história do bairro Tristeza com o lançamento dos dois volumes da obra “Revelando a Tristeza”.

O Arrabalde da Tristeza


Prédio do antigo Hotel da Praia

No início do século XX, época em que o Arrabalde da Tristeza ficava muito longe do centro da cidade, vários hotéis surgiram por lá. Segundo o cronista Roberto Pellin, o porto-alegrense fugia do centro e se dirigia até o fim da linha do bonde Teresópolis (puxado a burros até 1908), ou o do trem, na estação da Cantina (hoje entrada da Vila Assunção). Desses pontos eram levados à praia pelos breques (quatro rodas, tolda e dois cavalos) ou pelas aranhas (charretes).

Em 1904, foi construído um hotel de alvenaria com dois andares na praia da rua Doutor Mario Totta. Era o moderno Hotel da Praia. Este prédio foi comprado pelas Irmãs do Sagrado Coração em 1908, que ali instalaram um colégio, mais tarde destruído por um incêndio.

Em 1940, a área foi adquirida pelo Banrisul para a construção de um Cassino. Com a proibição dos jogos de azar, transformou-se na colônia de férias dos funcionários do banco (Banricap). Hoje abriga o Centro de Treinamento da Procergs.

Foto: Museu Banrisul - Antigo Cassino Banrisul, rua Doutor Mario Totta, bairro Tristeza, década de 1940 (acervo Porto História PH/Banrisul: o nosso banco).

Do Blog Porto História PH

P.S. A Rua Doutor Mário Totta, na zona sul de Porto Alegre, tinha se transformado numa passarela de craques naquele abril de 1969. A estada da Seleção Brasileira na sede campestre que ficava às margens do Guaíba alterou a rotina da vizinhança, especialmente pela presença de policiais, que impediam o acesso ao local da concentração, o Hotel da Praia.

No ano seguinte, a Seleção Brasileira iniciou a preparação para a Copa do Mundo do México em um amistoso no dia 4 de março de 1970 contra a Argentina.

O jogo foi disputado no Estádio Beira Rio, em Porto Alegre, com um público de 69. 345 pagantes. João Saldanha, que classificara o Brasil para o Mundial, fez algumas alterações na equipe, e o resultado não foi dos melhores.

Com gols no segundo tempo, a Argentina venceu por 2 a 0. Quatro dias depois, o Brasil foi à forra e derrotou os argentinos por 2 a 1, no Maracanã. Mas a vitória não foi suficiente para manter João Saldanha no cargo, demitido e substituído por Zagalo.

Cine−Thetro Gioconda, o cinema da Tristeza


Cartaz do Cine-Theatro Gioconda com a programação de 1924, juntado como prova em processo judicial de 1927. O cinema funcionava numa casa alugada por Manoel Rodrigues Filho e João Pellegrino no arrabalde da Tristeza, onde também havia um bar com mesa de bilhar.

Imagem: acervo do Memorial da Justiça Federal do RS

No cartaz há o seguinte texto: “O único cinema deste bairro que apresenta ao público as maiores novidades cinematographicas! Os verdadeiros filmes de sucesso, FORAM, É, E SERÃO exibidos unicamente no preferido e popular CINEMA GIOCONDA.”

P.S. Hoje, no local que, depois de ser cinema, estúdio de filmagem do falecido cantor nativista Teixeirinha, e Caixa Econômica Federal, está loja TAQUI.

(Do Blog Porto História PH)

A Tristeza nunca foi triste

Gastão Loureiro Chaves


Baile de Carnaval da Sociedade União Padeiral, em 1929 –
foto retirada do livro Revelando a Tristeza, de Roberto Pellin

Talvez para desmentir o nome lendário, com diversas versões. Em eras passadas, núcleo populacional pequeno, havia muita integração social, por meio das reuniões familiares. Funcionava também como elemento aglutinador um cinema − o Gioconda, em um amplo prédio ainda existente ao lado do supermercado Nacional, na Avenida Wenceslau Escobar, atualmente desocupado.

Existiam, então, entre outras, duas sociedades rivais: Jocotó e Filosofia. A primeira, mais despojada e foliona. A segunda, mais elitista e restrita. A Filosofia era presidida pelo Dr. Armando Barbedo, e o Jocotó, pelo Dr. Mário Totta - ambos renomados médicos que, mais tarde, vieram dar seus nomes às ruas onde moravam e que até hoje são mantidos.

O Dr. Mário Totta era uma pessoa extrovertida, muito alegre e jovial, sempre à frente dos acontecimentos singulares do arrabalde. Assim, quando foi introduzida no bairro a luz elétrica, promoveu o festivo funeral do lampião. Os bailes de carnaval eram efetuados, quase sempre, pelo Jocotó no cinema Gioconda, e os da Filosofia no Theatro São Pedro, no centro da cidade, cujas plateias eram removidas para a execução dos folguedos carnavalescos.

Estes eram antecedidos por uma preparação, os chamados 'assaltos' às residências dos veranistas. Em data previamente acertada, os 'cordões', formados por pares, geralmente de namorados, invadiam as moradas dos assaltados, onde eram recebidos com 'comes e bebes', e, por algumas horas, ficavam evoluindo, dançando e cantando, ao ritmo de improvisados conjuntos.

Na noite do respectivo baile de Carnaval, antes de iniciá-lo, cada sociedade realizava um corso, em carros abertos, precedido por cavalarianos que tocavam clarins pelas ruas centrais da Capital. Os cordões, em uma sadia emulação, se esmeravam na criatividade e no aprimoramento das fantasias e, no decorrer dos bailes, se visitavam reciprocamente.

O entusiasmo e a animação eram extravasados por canções, confete, serpentina e lança-perfume. Este de livre uso, eis que não ocorrera ainda o desvirtuamento, que levou à sua proibição. Tudo era, apenas e tão somente, alegria espontânea, sem malícia ou qualquer perversão ou desvio.

Ocorriam ainda durante os folguedos carnavalescos banhos à fantasia no Guaíba, em que os veranistas utilizavam as mais estranhas vestimentas e disfarces, em meio a hilariantes momices e trejeitos. Assim foi a Tristeza na época do Carnaval.

*Gastão Loureiro Chaves - advogado aposentado que mora na Tristeza - e foi originalmente publicado no caderno ZH Zona Sul de 9 de fevereiro de 2007.


As “baratinhas” na Tristeza

O 8º Circuito da Pedra Redonda foi realizado em julho de 1957 e teve como vencedor o campeão argentino Juan Gálvez, com velocidade média de 136,32 km/h. Sua carretera Ford cupê 1939 pesava 350 kg a menos que as demais. Os irmãos Júlio e Catharino Andreatta foram, respectivamente, o segundo e o terceiro colocados. A partir de então, os pilotos brasileiros adotaram os novos princípios da preparação argentina.

Na categoria “sport”, para veículos com motores de até 2.000 cm3, participaram automóveis das marcas Simca, Volkswagen, Citroen, Borgward, DKW, Renault e Austin. (Paulo Scali/Circuitos de rua: 1908-1958)

Foto: autor desconhecido – Um momento da prova realizada em 1957 no Bairro Pedra Redonda, zona sul de Porto Alegre. (Acervo Porto História PH/Circuitos de rua: 1908-1958)

P.S. A foto é do final da avenida Wenceslau Escobar, descendo para a Pedra Redonda e início da avenida Coronel Marcos.

Do Blog Porto História PH

Pingos

Guilherme Schultz Filho


Em cada ronda da vida
eu tive um pingo* de lei.
Montado, sou como um rei,
pelo garbo e o entono.
Cavalo pra mim é um trono:
e neste trono me criei.

De piazito já encilhava
um peticinho faceiro,
que era cria de um overo
e de uma eguinha bragada:
era da cor da alvorada
o meu petiço luzeiro!

Rosado como as manhãs,
do pelo da própria infância,
mascando o freio com ânsia,
parece que até sorria...
Chamava-se “Fantasia”
e era a flor daquela estância.

Já mocito, o meu cavalo
era um ruano, ouro nas crinas,
festejado pelas chinas
que o chamavam − “Sedutor”.
Formava um jogo de cor
sob os reflexos da aurora
co'os cabrestilhos da espora
e os flecos do tirador.

Naqueles tempos de quebra,
nos bolichos, ao domingo,
sempre floreando meu pingo
todos me viram pachola
com o laço a bate-cola
e virando balcão de gringo.

O meu cavalo de guerra
chamava-se “Liberdade”!
Chomico! Ouanta saudade
me alvorota o coração!
Era um mouro fanfarrão,
crioulo da própria marca
e eu ia como um monarca
na testa de um esquadrão.

Em uma carga das feias
(como aquela do Seival)
o mesmo que um temporal
rolamos por um lançante
e até o próprio comandante
ficou olhando o meu bagual.

Homem feito e responsável,
o meu flete era um tostado,
tranco macio, bem domado,
(êta pingo macanudo!
desses que “servem pra tudo”,
segundo um velho ditado.

Mui amestrado na lida,
um andar de contra-dança;
de freio, era uma balança,
campeiro, solto de patas...
Gaúcho, mas sem bravatas,
e o batizei de “Confiança”.

O cavalo que encilho
nesta quadra da existência,
dei-lhe o nome de “Experiência”.
É um picaço de bom trote
e levando por diante o lote
rumbeio à Eterna Querência.

E, assim, vou descambando,
ao tranco e sem escarcéu,
sempre tapeado o chapéu
por orgulho de gaúcho,
e se Deus me permite o luxo
entro a cavalo no céu!


*Pingo: cavalo de sela, bom e bonito.


quinta-feira, 23 de maio de 2019

Tinteiros e Bagadus



Imagem da Internet

Quando em 1835 a guerra rompeu entre as facções farroupilha e caramuru, os meninos da cidade de Porto Alegre formaram duas parcialidades que se reproduzem de tempos a tempos a qualquer movimento bélico no país.

Eram os Tinteiros e Bagadus.

Desde a ponta das Pedras até a rua Clara*, estavam os últimos; desde a rua Clara em diante existiam os primeiros.

As duas denominações exprimiam caracteristicamente os indivíduos de bairros tão diferentes pelos costumes e civilização de seus habitantes. Tinteiro significava o que sabia ler e escrever, a miuçalha que, favoneada pela fortuna podia ter a tintura literária, segundo seus gostos; bagadu, o desvalido da sorte, cujo destino se assemelhava ao peixe, donde lhe proviera o nome, e que não é menos favorecido da natureza.

Um era o rico, o letrado, o que tinha as comodidades da vida e as condições que de per si o elevavam; o outro, o pobre, o ignorante, tomando um lugar no banquete da vida por seus esforços próprios na luta contra a natureza bravia e indômita e contra o parasitismo dos grandes e poderosos que tendem sempre a absorver os modestos, obscuros, e, no entanto, incansáveis obreiros, imenso corpo de colaboradores anônimos, em cujos braços repousa a humanidade.

Apesar da metamorfose pela qual tem passado a cidade, desde a época a que nos reportamos, ainda subsistem traços entre as crianças dos dois bairros, em sua generalidade. Porém o tinteiro tem sempre conquistado terreno a seu adversário, o tem lentamente repelido, reduzindo-o quase ao domínio das costas de sul e oeste.

Zeca era então um dos chefes dos bagadus. A partida de seu comando levava sempre de vencida o inimigo. Contava cada vitória por cada combate ferido.

Um dos seus mais belos triunfos foi junto à bateria da defesa da costa entre as ruas Principal e Bela. Aí os tinteiros tinham o número duplo de gente e alguns mais esforçados. Zeca, para vencê-los, usou dum estratagema. Foi insensivelmente impelindo-os para a praia e caindo de súbito com inaudita impetuosidade sobre eles, em pouco os meteu duas braças dentro dʼágua.

É o que queria. Os bagadus são como a ariranha que caça a ave aquática por debaixo da onda. Como verdadeiros anfíbios mergulharam, e em rápido intervalo segurando-os pelas pernas, iam atirando-os ao comprido nʼágua.

Era cena interessante! Só se via tinteiro a espernear na ânsia da asfixia! E ai deles se não viesse em seu socorro a guarda da bateria! Talvez que algum tivesse ficado sem vida no campo de batalha.

Depois que os competidores saíram murchos do banho como pintainhos caídos no açude, foi um infernal alarido.

− Vivam os bagadus!

− Fora os tinteiros! Fiu, fiau! Fiu, fiau!

− Viva Pilungo!

E, assim, com gritos e assovios de vaia, foram acompanhando os vencidos até a velha ponte de madeira que então existia na confluência do arroio Dilúvio com o Guaíba, e depois foi substituído pela atual de pedra no extremo da rua da Figueira.

Outra ocasião ele chegou com mais dez companheiros veio provocar um grande magote dos contrários no desembocar da rua Formosa na praça da Matriz. E quando depois de uma tremenda xingação foram assaltados pelos outros, deitaram a correr, desceram a rua do Cemitério, dobraram a do Arvoredo e acolheram-se à sombra de uns laranjais que ficavam nas imediações do atual seminário.

O pequeno caudilho dos tinteiros, que era sacudido e tinha grande vontade de abater o topete a Pilungo, gritou aos seus em número pouco mais ou menos de trinta:

− Encurralem os bagres!

O laranjal ficou cercado e Zeca com os seus dez camaradas fez frente à multidão. O sítio, onde se encostara, era defendido por um bamburral de pitangueiras e maricás, ijapecangas e outras trepadeiras.

Os outros aproximavam, e eles firmes como estátuas, esperando-os.

Quando os tinteiros traçaram um semicírculo em torno e o vinham fechando com espantosa alacridade, Zeca pôs dois dedos nos cantos da boca e desprendeu um assovio estrídulo e agudo.

Então por cada tronco escorregaram dois ou três rapazes armados de cutias e guascas.

− Viva os bagadus! Rugiram atacando inimigo por todos os lados, segurando-os na estatelação da surpresa, e depois de despi-los, indo amarrá-los em cada árvore ali existente.

Alcançado o triunfo, Zeca retirou-se satisfeito da façanha. Os prisioneiros ficaram duas horas na incômoda postura, até que atraídas pela desesperada choradeira algumas pessoas vieram soltá-los, não deixando de rir da proeza do endemoninhado rapaz.

Porém, um dia, também foi a única vez, Zeca estava entretido no Caminho Novo, junto às fortificações, em admirar os navios de guerra que flanquevam a linha de defesa, senão quando um grupo de contrários amontoram-lhe uma camaçada de pau.

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(Parte do conto “Pilungo”, no livro “Paisagens”, 
de Apolinário Porto Alegre)

*Rua Clara atual Rua General João Manoel.


Apolinário José Gomes Porto-Alegre (Rio Grande, RS, 29 de agosto de 1844Porto Alegre, RS, 23 de março de 1904) foi um escritor, historiógrafo, poeta e jornalista brasileiro. É considerado um dos autores mais importantes do Rio Grande do Sul.

P.S. A guerra terminou após a batalha do dia 29 de junho de 1849, quando TINTEIROS e BAGADUS foram cercados pela polícia e uniram-se para reagir contra a agressão oficial. Com a chegada das mães dos jovens a guerra chegou a bom termo. Apesar disto, a polícia efetuou a prisão de alguns BAGADUS sob o pretexto de que eram “vagabundos”, “de maus costumes”, ordenou que desfilassem pela cidade no meio de um pelotão de soldados e os encaminhou para servirem na Marinha Imperial, onde a chibata e os espancamentos eram comuns. (João Batista Marçal/As lutas operárias no RS)

Honório Lemes um guerreiro dos pampas



Honório Lemos da Silva. conhecido como “O Leão do Caverá” nasceu em Cachoeira do Sul, RS em 23 de setembro de 1864 e morreu em Rosário do Sul, em 30 de setembro de 1930 foi tropeiro e pequeno proprietário pobre e quase analfabeto que, patriota, liberal convicto e admirador de Gaspar da Silveira Martins, ao rebentar a revolução federalista, em 1893, ingressou como simples soldado nas fileiras revolucionárias, chegando ao posto de coronel. Terminada a luta em 1895, voltou a se dedicar às lides campeiras.

Em 1923 voltou a pegar em armas, dessa vez para lutar contra a posse de Borges de Medeiros, que havia sido reeleito para o quinto mandato consecutivo no governo gaúcho. Em novembro do ano seguinte voltou a rebelar-se, dessa vez em apoio aos jovens oficiais militares que, liderados por Luis Carlos Prestes, sublevaram unidades do Exército no interior gaúcho contra o governo do presidente Artur Bernardes. Em 1925 foi preso e levado para Porto Alegre, porém, conseguiu fugir e exilou-se na Argentina. Apoiou a candidatura presidencial derrotada de Getúlio Vargas em 1930.

Honório terminou seus dias como posteiro na Estância Santa Ambrozina em Rosário do Sul. Quando se sentiu doente foi levado para o distrito de Pampeiro em Livramento, para a residência de seu sogro, Sr. Fulgêncio Silveira onde veio a morrer. Seu corpo foi levado para sepultamento em Rosário do Sul, cidade onde sempre residiu.

Fonte: blog do Léo Ribeiro


Descrição do General Honório Lemes

Honório de* Lemos tem 60 anos, mas aparenta muito menos, principalmente quando monta seu animal preferido e galopa pelos campos, com cinturão largo, de onde pende sempre uma espada com cabo trabalhado em marfim. Ninguém conhece os pampas com tanta intimidade como ele, um velho tropeiro que lutou na revolução de 1893 e na guerra civil de 1923. Não são apenas a espada longa e os dois imensos revólveres, tipo cowboy, que indicam ser ele o chefe. Honório ostenta outra espécie de distintivo: uma larga fita vermelha em volta da copa do chapéu, com as pontas caindo das abas sobre os ombros, em forma de galhardetes, como costumam usar os rebeldes gaúchos. Para os homens como Honório de Lemos, habituado a lutar sempre montado, os cavalos são mais importantes do que a munição. Os ataques, realizados sempre a galope, são acompanhados por gritos de guerra que se misturam com os disparos de revólveres e carabinas. Nessas cargas de cavalaria não faltam combates com lanças e espadas, na base do corpo-a-corpo, uma das muitas tradições das lutas do sul. (...).

(Do livro “As noites das grandes fogueiras
– Uma História da Coluna Prestes”,
de Domingos Meirelles)

*No livro, o autor, Domingos Meirelles, denomina-o de Honório de Lemos.

A morte do caudilho

Ao adoecer gravemente, fora transportado, contra sua vontade, para a casa de seu sogro, na Estação Porteirinha. O mal − tuberculose pulmonar, aos 65 anos de idade − não tinha mais cura. Entretanto, sonhava ainda com a vida e a guerra que se aproximava, a de 1930. O médico lhe recomendara todo cuidado e absoluto repouso.

− Cinco dias são bastante, doutor. − disse, então.

Não eram. Muito mais requeria a Medicina. Então Honório não se conteve:

− Mais do que isto é impossível, doutor. Então o Rio Grande vai levantar-se todo e eu fico aqui, atirado, como um molambo sem vida?...

Dias depois, falecia. Desaparecia, dentre os vivos, o “Leão do Caverá”, o “Tropeiro da Liberdade”, cercado pelos seus, pensando na liberdade do Rio Grande do Sul e do Brasil, libertação que, entretanto, se transformaria em grilhão contra o qual, certamente, o “velho” General Honório Lemes da Silva, se não houvesse falecido, se ergueria ao lado do “velho” Borges de Medeiros, seu antigo inimigo político, como se novamente tivesse os mesmos 29 anos com que ingressara na luta de 1893.

Walter Spalding

Como dizia Honório Lemes

(Uma história folclórica do general)

Diz que, em 19 de junho de 1923, durante o combate da Ponte do Ibirapuitã, no Alegrete, as metralhadoras dos chimangos legalistas de Flores da Cunha choviam balas nos maragatos revolucionários do general Honório Lemes.
– Não tem poblema – disse o general. – Se as bala vier por cima, nóis se abaixemo.
– E se vierem por baixo, general?
– Nesse caso, nóis pulemo.
– Mas, e se vierem no meio?
– Bueno, aí nóis se quebremo.*

*Há quem diga que foi: aí nóis se fudemo.

    
Na sua lápide, em Rosário do Sul, a frase de sua autoria revela as causas pelas quais tanto lutou: 

“Quero leis que governem homens 
e não homens que governem leis”.