sábado, 26 de abril de 2014

Praça da Harmonia



Athos Damasceno Ferreira

Ela foi o jardim dos poetas provincianos
‒ a velha Praça da Harmonia,
Rodeada de frades de pedra, alumiada
de lampiões a gás, debaixo das paineiras,
com estátuas de louça à beira da aléias
e bancos sob a fronde amorosa da tílias...

O Álvaro, o Felipe, o Dionélio, o Eduardo,
o Wamosy, o De Sousa... andaram por ali...
E quando o luar tecia, entre a poeira do esguicho
e a quietude da sombra, a renda dos reflexos,
eles liam Smain, Rodenbach, Verlaine...

Ao fundo, junto a plinto e ao gradil da amurada,
o Guaíba embalava, às vezes, um veleiro...
E a noite camarada e cheiroso de orvalho
acordava violões, nas esquinas, cantando...

Que é dos poetas que, um dia, ó velha praça morta,
embriagaste com o filtro amável dos teus luares,
das tuas sombras cariciosas,
dos teus silêncios confidentes?...

Tristes vozes de outrora, eu sei,
muitas calaram para sempre...
E hoje, mesmo de ti, nada nos ficou...

Voam, alto, por sobre os plátanos despidos
as aves... E, se acaso os sinos, bimbalando,
agora, enchem o céu do som religioso dos bronzes,
em seguida é maior o silêncio
que espalma as asas , em redor...

És um deserto só... Ninguém mais te procura!...
Nem sequer o fantasma andejo da saudade
vem percorrer, à noite, as tuas alamedas...

Mas a bruma outonal se amortalha, no acaso,
e, abrindo sobre ti as grandes sombras quietas,
dá-te ainda a ilusão, sob as folhas caindo,
de que a cidade chora o jardim dos seus poetas...

(De Poemas da Minha Cidade,
Edição da Livraria do Globo, 1944)


Athos Damasceno Ferreira (Porto Alegre, 3 de setembro de 1902 − Porto Alegre, 1975) foi um poeta, romancista, cronista, tradutor, crítico literário e pesquisador brasileiro. Foi tradutor da Editora Globo e colaborador da revista Província de São Pedro e do jornal Correio do Povo. Seus dois principais livros têm como tema a cidade de Porto Alegre: Poemas da Minha Cidade (poesias), publicado em 1936, e Imagens Sentimentais da Cidade (crônicas), publicado em 1940. Também produziu extensa e indispensável obra no campo da pesquisa histórica e cultural, onde se destacam Palco, Salão e Picadeiro em Porto Alegre no Século XIX (1956), e Artes Plásticas no Rio Grande do Sul (1971).

É tido como o mais importante historiador e cronista da cidade de Porto Alegre, é o fundador da historiografia da arte no estado, e deixou destacada contribuição para a historiografia estadual nos campos da cultura e sociedade, sendo um pioneiro no estudo de vários temas. Foi um defensor da reavaliação dos regionalismos e um refinado poeta e novelista, embora nesta área seja pouco lembrado.


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