sábado, 26 de abril de 2014

Um texto surreal do ano de 1970



Luís Fernando Veríssimo

(Ano em que o bicho estava pegando...)

Acima de tudo, jamais confundir um ronco na barriga com a voz de Deus.

Evitar pai e mãe.

Em caso de incêndio, se mandar.

Nunca perguntar por quem os sinos dobram. Lembra o belo tipo faceiro que você tinha ao seu lado? Matou-o um rim creosotado.

Morrer bonito. Ser digno do seu caixão.

Não fazer drama. Nem comédia. Pior que morrer de colapso é morrer de relapso.

Honrar a mulher do próximo como o seu gato. Embaixo da mesa todos os gestos são pagos. No escuro todos os gagos são pardais.

Não desejar.

Olhar os lírios do campo, que crescem e florescem sem incentivos fiscais. Tirar deduções, tomar nota e engolir o papel.

Manter, durante todo o espetáculo, uma atitude de cauteloso respeito. Ver em cada piada um enigma e uma provocação. Lembrar-se de que os palhaços são os donos do circo, mas o domador é quem manda. E o leão é bicha.

Não levantar falso testemunho. O último que tentou está no hospital com uma hérnia do tamanho de um juiz.

Jamais lamentar a sorte dos escravos ou humilhação dos teus inferiores, pois eles dobram por ti. E, mesmo, no escuro todos os pardos são gatos.

Não se furtar. Pior que a economia são os mil anos de perdão.

Não endeusar o nome do vão em Santos.

Desconfiar de quem diz ter a verdadeira ojeriza. A única verdadeira está no cofre do marajá de Pardo-Pardo, guardada por sete gatos escuros, com domingos e festas.

Se te pedirem as horas, dar o relógio.

Se te pedirem um pensamento, dar a cabeça.

Observar o protocolo e fazer todo o que ele faz. Um ferreiro visita a casa de um enforcado. “Corda” diz o ferreiro. “Um licorzinho” oferece o enforcado, e vai lá dentro. Volta com um espeto de ferro e o crava no peito da visita. Antes de morrer, o ferreiro estrebucha: “Na minha casa, isto não aconteceria!” Moral: Ter muito cuidado.

Se pedirem tua opinião, correr. Já é uma definição.

Amar ao teu gato sobre todas as casas.

No escuro, a mulher do próximo mia como todas. O amor não mata, mas deforma.

Jamais desejar a mulher do Job, que é bisbilhoteira e insossa.

Jamais dizer o nome do Ivã, meu Deus. Todo nome é uma sigla.

Tomar duas drágeas de hora em hora com um copo de vinho. Se os sintomas persistirem, tomar só o vinho.

Nunca, nunca fazer perguntas. Mas ter sempre uma mentira no bolso, junto com o canivete e o Pepsamar. Todo otimista é mal informado.

Não pecar contra a castidade, a não ser em autodefesa.

Matar sempre com paixão. Pior que o castigo é a frustração.

Não invejar o escuro dos gatos, pois tudo é lustre e passageiro.

E no entanto, acreditar.


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