(Desenho de Fraga - ZH)
No final das tardes longas de verão,
era sagrado o joguinho improvisado no campo das taquareiras. A vida
custava para passar, os dias eram
compridos e a felicidade atendia pelo nome de bola. A nossa alegria era
redonda, no formato de algo que vai e volta, sempre. Eram dois contra dois,
três contra quatro, dois grandes contra dois pequenos, num sistema onde não
havia regras, os regulamentos eram feitos na hora, normalmente pelo dono da
bola e do campo. No caso, eu. Não havia reclamações fortes, até porque o
negócio era chutar, fazer gol nas traves de taquaras secas e apodrecidas pelo
tempo. Às vezes, o travessão voava longe com algum chute de potência exagerada.
“Não vale bomba”, gritavam os goleiros, isso quando havia gente suficiente para
se ter o luxo de jogar com goleiro. Na maioria dos casos, fazíamos pequena
goleiras com pedras, chinelos, tijolos quebrados, roupas amontoadas.
Ah, a infância é um guri correndo de
qualquer coisa que role, que pelo menos possa ser chutada. Se for uma bola,
melhor. Se for de couro, bem, aí a felicidade pode ser considerada completa.
Lembro que em nossas partidas nunca tínhamos bola de couro. Os joguinhos
começaram com uma bola que inventei, formada por dezenas de camadas de sacos
plásticos atados com barbante, tiras de borracha e até tentos de couro que
encontrava atirado pelo chão. Os modelos feitos com arame foram aposentados depois
o Chupim quase ficou cego com uma bolada no olho. O arame por pouco não fura a
retina do moleque, um driblador por excelência, mas muito chorão. A partir
daquele episódio, as bolas passaram a passar por uma espécie de controle de
qualidade, vistoria que era feita pela dona Mirica, minha mãe.
Foi então que num final de ano ganhei
uma bola de couro, número 5, um espetáculo. Um tio ferroviário a levou dentro
de uma caixa de papelão. Quando a vi, fiquei extasiado, radiante, nem acreditei
que fosse verdade. Finalmente, nosso campinho ia conhecer uma bola de verdade.
Tinha cheiro de couro, estralava de novinha. Mas depois que a enchi, que ela
ficou redondinha e branca, fiquei com ciúmes, sentei em cima e não deixava
ninguém tocá-la. Meu tio teve que me aconselhar para que os amigos pudessem
também usufruir do meu presente.
Um dia ela furou numa cerca de arame
farpado. Depois, vim embora para a Capital e nunca mais vi minha linda pelota
de couro cru, que tanto doía nas nossas canelas doloridas. O campinho das
taquareiras virou lavoura de soja. Os dias passaram a ser frios, cinzentos e
curtos. Tudo passou, só o que não passa nunca é esta vontade desgranida de ser
guri outra vez...
(Paulo
Mendes – Correio do Povo, 29.06.2014)
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