segunda-feira, 30 de junho de 2014

A felicidade é redonda


(Desenho de Fraga - ZH)

No final das tardes longas de verão, era sagrado o joguinho improvisado no campo das taquareiras. A vida custava  para passar, os dias eram compridos e a felicidade atendia pelo nome de bola. A nossa alegria era redonda, no formato de algo que vai e volta, sempre. Eram dois contra dois, três contra quatro, dois grandes contra dois pequenos, num sistema onde não havia regras, os regulamentos eram feitos na hora, normalmente pelo dono da bola e do campo. No caso, eu. Não havia reclamações fortes, até porque o negócio era chutar, fazer gol nas traves de taquaras secas e apodrecidas pelo tempo. Às vezes, o travessão voava longe com algum chute de potência exagerada. “Não vale bomba”, gritavam os goleiros, isso quando havia gente suficiente para se ter o luxo de jogar com goleiro. Na maioria dos casos, fazíamos pequena goleiras com pedras, chinelos, tijolos quebrados, roupas amontoadas.

Ah, a infância é um guri correndo de qualquer coisa que role, que pelo menos possa ser chutada. Se for uma bola, melhor. Se for de couro, bem, aí a felicidade pode ser considerada completa. Lembro que em nossas partidas nunca tínhamos bola de couro. Os joguinhos começaram com uma bola que inventei, formada por dezenas de camadas de sacos plásticos atados com barbante, tiras de borracha e até tentos de couro que encontrava atirado pelo chão. Os modelos feitos com arame foram aposentados depois o Chupim quase ficou cego com uma bolada no olho. O arame por pouco não fura a retina do moleque, um driblador por excelência, mas muito chorão. A partir daquele episódio, as bolas passaram a passar por uma espécie de controle de qualidade, vistoria que era feita pela dona Mirica, minha mãe.

Foi então que num final de ano ganhei uma bola de couro, número 5, um espetáculo. Um tio ferroviário a levou dentro de uma caixa de papelão. Quando a vi, fiquei extasiado, radiante, nem acreditei que fosse verdade. Finalmente, nosso campinho ia conhecer uma bola de verdade. Tinha cheiro de couro, estralava de novinha. Mas depois que a enchi, que ela ficou redondinha e branca, fiquei com ciúmes, sentei em cima e não deixava ninguém tocá-la. Meu tio teve que me aconselhar para que os amigos pudessem também usufruir do meu presente.

Um dia ela furou numa cerca de arame farpado. Depois, vim embora para a Capital e nunca mais vi minha linda pelota de couro cru, que tanto doía nas nossas canelas doloridas. O campinho das taquareiras virou lavoura de soja. Os dias passaram a ser frios, cinzentos e curtos. Tudo passou, só o que não passa nunca é esta vontade desgranida de ser guri outra vez...

(Paulo Mendes – Correio do Povo, 29.06.2014)




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