quarta-feira, 23 de julho de 2014

O homem que amava os cães



Desenho de Soza

Tenho a impressão que ele amava mais a cuscada que o acompanhava do que as próprias mulheres. Olhe que foram muitas, pelo menos era o que se dizia nos arredores do Durasnal, onde havia construído um rancho há décadas. Quase não vivia em casa, estava sempre carreteando, profissão que aprendera com o pai, que recebera do seu pai e assim por diante. Era uma geração de gente da estrada. Agora já velho, Manduca Fortes, o carreteiro, era uma espécie de ermitão campeiro, andava sozinho e quase nunca voltava para casa. Emendava uma volteada na outra e no ranchinho de santa-fé ficavam apenas uns gatos, uma égua malacara manca e uns passarinhos de gaiola. Lembro que o Feio, que morava perto, ia lá todo dia dar comida e água pros bichos da tapera.

Sei que quando a carreta toldada do Manduca apontava na encruzilhada, era uma festa só. Nosso bolicho fervia com aquele alvoroço de acoos, gritos, assobios e a movimentação da cachorrada que corria de um lado para outro. O Manduca, então, apeava da lobuna, entrava na venda e pedia um copo de vinho. E soltava o verbo, contando causos dos lugares por onde havia passado. Trazia notícias das estâncias, dos vilarejos e reclamava dos caminhões que estavam tirando seu sustento. “O violão matô a viola, o fófro matô o isquero, se seguir nesse trote, vão matá o carretero”, dizia em forma de trova, rindo, enquanto engolia o tinto, passando a mão calejada pelas melenas brancas.

Os cachorros do Manduca viraram lendas pros lados da Vila Rica. Teve um buldogue branco chamado Tupã, que segurava um touro brabo pelo focinho. Já o Lorde era um galgo que abocanhava uma lebre em segundos, pois era um raio de ligeiro. Junto, andavam uns cuscos pequenos, sem raças definidas, “cruzados” como ele dizia, uma espécie de ajudantes de ordens do Tupã e do Lorde. Esses dois, os chefes, nunca brigavam, “pois se isso acontece se matam, são orgulhosos 'por demas'”. Às vezes, ocorria de um novo integrante se incorporar à matilha, como nesses circos que percorriam o nosso Interior nos tempos idos, o senhor me compreende?

Manduca amava os cães: “Conheci muita gente na vida, Paulinho. E digo, o cachorro é melhor que qualquer humano”. E limpava os olhos com o dorso da mão. Anos depois, me contaram que o Manduca havia parado de carretear com a morte do Tupã, que pegara uma doença degenerativa. Dizem que acompanhou o sofrimento do animal até o fim. Gastou o pouco que tinha, vendeu os bois para comprar remédios e pagar o veterinário. “Tanto faz ficar sem nada, também estou morrendo.” Nunca mais se soube do Manduca e seus amigos. Só restou a tapera do Durasnal...

Paulo Mendes


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