por J.A.Moraes de
Oliveira*
Os bondes Prado e Independência eram
nosso rito de passagem para o centro de Porto Alegre. Lá, descobríamos
fascinados as ricas vitrinas da Casa Krahe, da Sloper, da Cecilia Louro, os
cinemas com poltronas estofadas, as confeitarias repletas de delícias. E o
melhor de tudo – ao longo da Rua da Praia sempre se podia admirar as moças
passeando de braços dados. O nosso ponto de embarque era a Praça Júlio de
Castilhos. Eu e meus amigos viajávamos na plataforma traseira e os mais
atrevidos, pendurados nos corrimões ou se balançando nas correntes das portas,
evitando a ronda atenta do cobrador.
Ao longo da Avenida Independência,
arriscávamos trocas de olhares ou um furtivo sorriso com as meninas debruçadas
nas janelas dos casarões. O preferido era o bonde Prado, quase sempre do tipo
“gaiola”, que sacolejava nos trilhos no trajeto de ida-e-volta até o antigo
Jockey. Era impossível ignorar sua passagem, pois seu barulho estridente fazia
todos voltarem a cabeça para vê-lo passar. Lá dentro, admirávamos os cartazes
anunciando o Xarope São João, a Emulsão de Scott, o Iofoscal e A Saúde da
Mulher... Aonde andarão aquelas maravilhosas poções?
O regresso para casa à noite, depois
da última sessão nos cinemas do centro, exigia certos cuidados. Como o último
bonde saía à uma hora da manhã, os que tinham relógio de pulso eram
encarregados de controlar o horário e evitar a longa caminhada nas madrugadas
de inverno.
Quando a última sessão de cinema
terminava, pouco antes da meia-noite, era obrigatória uma visita ao Matheus
para um bauru com guaraná. Meia hora depois, chegavam os jornais na banca da
Praça da Alfândega. Antes de seguir pela Rua da Praia acima, dava tempo de
comprar o Correio do Povo ou o Diário de Notícias e espiar as capas das
revistas, ainda empacotadas: “O Cruzeiro”, “A Cigarra”, “Revista do Rádio”...
Ao cruzar a Borges, o relógio da Casa
Masson marcava poucos minutos para a uma da manhã. Descíamos correndo a Galeria
Chaves até o abrigo da Praça XV, a tempo de ouvir a sineta do motorneiro,
avisando que o último bonde estava pronto para sair. Que logo, logo seguiria
pela Otavio Rocha, subiria a Coronel Vicente e ganharia a avenida
Independência. Para trás ficavam o ruído das cortinas de aço dos bares,
despedindo os últimos clientes, e os letreiros em neon, sendo apagados um a um.
Quando tínhamos conosco o João Carlos
ou o José Luiz, o trivial bauru do Matheus dava lugar ao luxo da canja de
galinha no Treviso, ali no velho Mercado. Lá pelas duas horas da manhã,
cansados e felizes, voltávamos para casa nos confortáveis bancos do Kaiser do
João Carlos ou no barulhento jipe Willys cor-de-laranja do José Luiz.
Na rua adormecida, eu abria o portão
de casa com cuidado para não acordar minha mãe. Deitava em silêncio, saboreando
as emoções das minhas pequenas aventuras na macia madrugada de Porto Alegre.
Dez anos depois, eu leria com
tristeza que os bondes deixariam de circular em Porto Alegre , para
serem substituídos por modernos tróleibus. Um colega da Folha da Tarde veio
avisar que os velhos bondes estavam sendo reunidos no depósito da Carris para
serem desmontados e vendidos como sucata.
O nosso grupo se reuniu na frente do
bar do Joaquim, na Oswaldo Aranha, e dali fomos até a João Pessoa para rever os
bondes condenados. E lá estavam eles, alinhados nos pátios desertos, ainda
ostentando os letreiros da última viagem. Convencemos o vigia a nos deixar
entrar e tentamos reconhecer os “nossos” bondes. Pulamos de uma plataforma para
outra, pois os bondes estavam alinhados lado a lado. Os primeiros eram os que
faziam as linhas da Azenha, Teresópolis, Duque e alguns “Gasômetro”, mas eles
não significavam muita coisa e seguíamos procurando.
Foi quando o Walmor gritou do outro
lado do pátio: “Achei - estão aqui”. Corremos e lá estavam uns dez bondes Prado
e Independência. Foi um retorno no calendário – meia dúzia de homens adultos,
casados e com filhos – sentados naqueles bancos de carvalho, puxando a manivela
do controle de passageiros, mexendo nos comandos de bronze. Olhávamos os
cartazes de propaganda, mas eles estavam rasgados e irreconhecíveis. Apenas o
pescador da “Emulsão de Scott”, com o bacalhau às costas, nos olhava com um ar
tristonho, como que dizendo adeus.
Já anoitecia, quando cansados e como
que envergonhados, retomamos nosso ar de adultos e caminhamos em direção à saída
do depósito. Em despedida, um de nós, com um tardio ar de travessura, apertou
várias vezes o pedal da sineta de partida, que ecoou solitária no pátio vazio.
Antes de dobrar a esquina, olhamos mais uma vez os velhos bondes. Alguém
arriscou uma brincadeira, mas os sorrisos não conseguiram disfarçar a tristeza
daqueles ex-meninos.
Algumas vezes ainda percorri os
velhos caminhos, tentando reconhecer vestígios da adolescência, buscando sons e
imagens por detrás dos casarões remanescentes. Em uma certa tarde, a caminho do
hotel, tive a impressão de ver pedaços dos antigos trilhos semi-enterrados sob
o asfalto da 24 de outubro. E, no mesmo instante, julguei ter ouvido o guincho
das rodas de aço do bonde Prado, fazendo a curva da Mostardeiro. Cheguei a me
voltar, assustado, mas era apenas o som de uma caçamba descarregando material
de construção.
Decidi voltar às minhas ocupações,
antes que um amigo ou conhecido me surpreendesse parado naquela esquina,
espreitando o passado.
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