domingo, 16 de agosto de 2015

O Último Bonde

por J.A.Moraes de Oliveira*


Os bondes Prado e Independência eram nosso rito de passagem para o centro de Porto Alegre. Lá, descobríamos fascinados as ricas vitrinas da Casa Krahe, da Sloper, da Cecilia Louro, os cinemas com poltronas estofadas, as confeitarias repletas de delícias. E o melhor de tudo – ao longo da Rua da Praia sempre se podia admirar as moças passeando de braços dados. O nosso ponto de embarque era a Praça Júlio de Castilhos. Eu e meus amigos viajávamos na plataforma traseira e os mais atrevidos, pendurados nos corrimões ou se balançando nas correntes das portas, evitando a ronda atenta do cobrador.

Ao longo da Avenida Independência, arriscávamos trocas de olhares ou um furtivo sorriso com as meninas debruçadas nas janelas dos casarões. O preferido era o bonde Prado, quase sempre do tipo “gaiola”, que sacolejava nos trilhos no trajeto de ida-e-volta até o antigo Jockey. Era impossível ignorar sua passagem, pois seu barulho estridente fazia todos voltarem a cabeça para vê-lo passar. Lá dentro, admirávamos os cartazes anunciando o Xarope São João, a Emulsão de Scott, o Iofoscal e A Saúde da Mulher... Aonde andarão aquelas maravilhosas poções?

O regresso para casa à noite, depois da última sessão nos cinemas do centro, exigia certos cuidados. Como o último bonde saía à uma hora da manhã, os que tinham relógio de pulso eram encarregados de controlar o horário e evitar a longa caminhada nas madrugadas de inverno.

Quando a última sessão de cinema terminava, pouco antes da meia-noite, era obrigatória uma visita ao Matheus para um bauru com guaraná. Meia hora depois, chegavam os jornais na banca da Praça da Alfândega. Antes de seguir pela Rua da Praia acima, dava tempo de comprar o Correio do Povo ou o Diário de Notícias e espiar as capas das revistas, ainda empacotadas: “O Cruzeiro”, “A Cigarra”, “Revista do Rádio”...

Ao cruzar a Borges, o relógio da Casa Masson marcava poucos minutos para a uma da manhã. Descíamos correndo a Galeria Chaves até o abrigo da Praça XV, a tempo de ouvir a sineta do motorneiro, avisando que o último bonde estava pronto para sair. Que logo, logo seguiria pela Otavio Rocha, subiria a Coronel Vicente e ganharia a avenida Independência. Para trás ficavam o ruído das cortinas de aço dos bares, despedindo os últimos clientes, e os letreiros em neon, sendo apagados um a um.

Quando tínhamos conosco o João Carlos ou o José Luiz, o trivial bauru do Matheus dava lugar ao luxo da canja de galinha no Treviso, ali no velho Mercado. Lá pelas duas horas da manhã, cansados e felizes, voltávamos para casa nos confortáveis bancos do Kaiser do João Carlos ou no barulhento jipe Willys cor-de-laranja do José Luiz.

Na rua adormecida, eu abria o portão de casa com cuidado para não acordar minha mãe. Deitava em silêncio, saboreando as emoções das minhas pequenas aventuras na macia madrugada de Porto Alegre.

Dez anos depois, eu leria com tristeza que os bondes deixariam de circular em Porto Alegre, para serem substituídos por modernos tróleibus. Um colega da Folha da Tarde veio avisar que os velhos bondes estavam sendo reunidos no depósito da Carris para serem desmontados e vendidos como sucata.

O nosso grupo se reuniu na frente do bar do Joaquim, na Oswaldo Aranha, e dali fomos até a João Pessoa para rever os bondes condenados. E lá estavam eles, alinhados nos pátios desertos, ainda ostentando os letreiros da última viagem. Convencemos o vigia a nos deixar entrar e tentamos reconhecer os “nossos” bondes. Pulamos de uma plataforma para outra, pois os bondes estavam alinhados lado a lado. Os primeiros eram os que faziam as linhas da Azenha, Teresópolis, Duque e alguns “Gasômetro”, mas eles não significavam muita coisa e seguíamos procurando.

Foi quando o Walmor gritou do outro lado do pátio: “Achei - estão aqui”. Corremos e lá estavam uns dez bondes Prado e Independência. Foi um retorno no calendário – meia dúzia de homens adultos, casados e com filhos – sentados naqueles bancos de carvalho, puxando a manivela do controle de passageiros, mexendo nos comandos de bronze. Olhávamos os cartazes de propaganda, mas eles estavam rasgados e irreconhecíveis. Apenas o pescador da “Emulsão de Scott”, com o bacalhau às costas, nos olhava com um ar tristonho, como que dizendo adeus.

Já anoitecia, quando cansados e como que envergonhados, retomamos nosso ar de adultos e caminhamos em direção à saída do depósito. Em despedida, um de nós, com um tardio ar de travessura, apertou várias vezes o pedal da sineta de partida, que ecoou solitária no pátio vazio. Antes de dobrar a esquina, olhamos mais uma vez os velhos bondes. Alguém arriscou uma brincadeira, mas os sorrisos não conseguiram disfarçar a tristeza daqueles ex-meninos.

Algumas vezes ainda percorri os velhos caminhos, tentando reconhecer vestígios da adolescência, buscando sons e imagens por detrás dos casarões remanescentes. Em uma certa tarde, a caminho do hotel, tive a impressão de ver pedaços dos antigos trilhos semi-enterrados sob o asfalto da 24 de outubro. E, no mesmo instante, julguei ter ouvido o guincho das rodas de aço do bonde Prado, fazendo a curva da Mostardeiro. Cheguei a me voltar, assustado, mas era apenas o som de uma caçamba descarregando material de construção.

Decidi voltar às minhas ocupações, antes que um amigo ou conhecido me surpreendesse parado naquela esquina, espreitando o passado.

* J.A.Moraes de Oliveira é jornalista e publicitário



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