quarta-feira, 6 de julho de 2016

Camargo e a voz



Era um dia como qualquer outro. Camargo acordou, pulou da cama, tomou seu banho, vestiu-se e foi até a cozinha preparar seu café. Enquanto fazia sua primeira refeição, lendo o jornal, como todas as manhãs, ouviu a voz pela primeira vez. Era uma voz nítida e profunda:

‒ Camargo! É hoje, Camargo!

Camargo levantou os olhos do jornal e olhou em volta para ver quem falava. Com espanto, verificou que não havia mais ninguém junto dele. A voz repetiu:

‒ Escuta, Camargo! Quem te fala é a voz da Fortuna! Levanta e vem comigo!

Apesar de nervoso, Camargo obedeceu. Vestiu o paletó e saiu em direção à porta. Tremia de emoção.

‒ Camargo! Vamos até uma loja de bilhete de loterias! Escuta a voz da Fortuna, Camargo!

Camargo não cabia em si de excitação. Quase corria. Dois quarteirões adiante avistou a loja. Quando ia entrando a voz falou:

‒ Não, Camargo! A loja não é essa! Continua correndo, Camargo! Escuta a voz da Fortuna!

Camargo seguiu, correndo, quase sem fôlego, cada vez mais nervoso. Três ruas mais longe, outra loja. Camargo, na corrida, passa sem ver. A voz avisa:

‒ Para, Camargo! É aqui! Entra, pede as três séries daquele bilhete que está na vitrine. O número 45736. Vai, Camargo!

‒ Mas pra comprar o bilhete inteiro eu vou ficar sem um tostão até o fim do mês!

‒ Não seja ridículo, Camargo! É a voz da Fortuna quem te fala!

Camargo juntou tudo o que tinha no bolso e comprou o 45736.

‒ Agora vai pra casa, Camargo, e espera o resultado hoje à tarde. Você não deve falar com ninguém antes do resultado! Quem te fala é a voz da Fortuna!

‒ Mas se eu não for trabalhar vou perder o emprego! – disse Camargo.

‒ Não seja imbecil, Camargo! É a voz da fortuna! Vai, segue teu destino!

Camargo, febril, voltou para casa. Ligou o rádio e ficou à espera do resultado, mal se contendo de alegria. Finalmente chegou a hora. Pausadamente, o locutor anunciou o primeiro prêmio: “09218”.

Antes de desmaiar, horrorizado, Camargo ainda ouviu a voz da Fortuna dizendo desolada:

‒ Porra, Camargo, perdemos...
    
(Do livro “O Astronauta Sem Regime”, de Jô Soares)


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