sábado, 24 de setembro de 2016

Eu tenho um bugre dentro de mim



Eu tenho um bugre dentro de mim, tenho...
Sinto-o nesta paixão antiga por caçadas,
no prazer infantil de andar no mato,
na profunda afeição pelas coisas agrestes.

Nasci nas matas do rio Doce.
“Minha bisavó foi pegada a laço”...
Talvez seja por isso que não gosto de arranha-céus,
estes jequitibás mortos, sem folhagens
no carrascal das cidades.
Não gosto de apartamentos onde o ar
só entra pelos conta-gotas das janelas;
não gosto de asfalto, deixa o solo
sem poros, como cicatrizes de queimaduras;
nem de estradas eu gosto,
lembram cadáveres congelados...

Eu tenho um bugre dentro de mim,
diluído no meu sangue, tenho...
Sinto que ele me arrasta
para a fragrância balsâmica das matas,
para a música das cachoeiras,
para as noites leitosas de luar,
para a majestade serena dos grandes rios,
para o marulhar constante dos regatos,
para o verde dos mares,
para o azul dos céus,
para o silêncio repousante dos lagos adormecidos...

Ainda é ele, o bugre, que me impele
para a árvore de junco do teu corpo,
para os galhos roliços dos teus braços,
para a floresta escura dos teus cabelos,
para as águas dormentes dos teus olhos,
para o fruto vermelho da tua boca,
para os passarinhos que cantam na tua voz...

Eu tenho um bugre dentro de mim, tenho!
Por que, Senhor! Não fiquei só no bugre?...
No bugre livre de selo,
livre de folhinha,
livre de relógio,
livre de roupa...
No bugre livre! Livre! Livre!

(Demóstenes Cristino)


Demóstenes Cristino nasceu no dia 14 de julho de 1894 na Fazenda Caju, Distrito de Entre Folhas, Caratinga (MG). Cursou Odontologia em Juiz de Fora e exerceu a profissão em Poços de Caldas, até mudar-se em 1926 com a família para Ipameri (GO), à época chamada de Entre Rios. Lá, publicou Musa Bravia (1949) e Trovas(1960)e atuou também como jornalista colaborador dos dois jornais da cidade; um deles dirigido pelo também poeta Edésio Daher, avô dos filhos do poeta Reynaldo Jardim. A poesia, portanto, sempre rodeou Demóstenes, ele próprio avô da poetisa Ieda Schmaltz e pai de outro escritor, o médico Leonardo Cristino.

O poeta permaneceu viúvo 34 anos dos 36 vividos na pacata cidade goiana. Louvado pelo humor picantemente irônico e mordaz, definia-se como excêntrico e vaidoso, “todavia”, lembra César Baiocchi, “era extremamente cavalheiro e culto. Dizemos nós hoje” – continua Baiocchi – “Demóstenes Cristino, você é como aroeira de Entre Folhas mineira e de Entre Rios goiana, vive altaneira e altiva entre as árvores e depois que morre vira esteio e nunca acaba”. Em 18 de abril de 1962, o poeta faleceu em Ipameri.



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