Sérgio Faraco
Eu olhava para a estrada e tinha a
impressão de que jamais na vida chegaríamos a Nhuporã. Que pedaço brabo. O
camaleão se esfregava no chassi e o pai praguejava:
‒ Caminho do diabo!
Nosso Chevrolet era um trinta e oito de carroceria verde-oliva e cabina da mesma cor, só um nadinha mais escura. No para-choque havia uma frase sobre amor de mãe e em cima da cabina uma placa onde o pai anunciava que fazia carreto na cidade, fora dela e ele garantia, de boca, que até fora do estado, pois o Chevrolet não se acanhava nas estradas desse mundo de Deus.
Mas o caminho era do diabo, ele mesmo
tinha dito. A pouco mais de légua de Nhuporã o caminhão derrapou, deu um
solavanco e tombou de ré na valeta. O pai acelerou, a cabina estremeceu.
Ouvíamos os estalos da lataria e o gemido das correntes no barro e na água, mas
o caminhão não saiu do lugar. Ele deu um murro no guidom.
‒ Puta merda.
Quis abrir a porta, ela trancou
no barranco.
‒ Abre a tua.
A minha também trancava e ele
se arreliou:
‒ Como é, ô Moleza!
Empurrou-a com violência.
‒ Me traz aquelas pedras. E vê
se arranca um feixe de alecrim, anda.
Agachou-se junto às rodas e começou a fuçar, jogando grandes porções de barro para os lados. Mal ele tirava, novas porções vinham abaixo, afogando as rodas. Com a testa molhada, escavava sem parar, suspirando, praguejando, merda isso e merda aquilo, e de vez em quando, com raiva, mostrava o punho para o caminhão.
O pai era alto, forte, tinha o cabelo preto e o bigode espesso. Não era raro ele ficar mais de mês em viagem e nem assim a gente se esquecia da cara dele, por causa do nariz, chato como o de um lutador. Bastava lembrar o nariz e o resto se desenhava no pensamento.
‒ Vamos com essas pedras!
Por que falava assim comigo, tão danado? As pedras, eu as sentia dentro do peito, inamovíveis.
‒ Não posso,
estão enterradas.
‒ Ah, Moleza.
Meteu as mãos na terra e as arrancou
uma a uma. Carreguei-as até o caminhão, enquanto ele se embrenhava no capinzal
para pegar o alecrim.
‒ Pai, pai, o caminhão tá
afundando!
A cabeça dele apareceu entre as
ervas.
‒ Não vê que é a água que tá
subindo, ô pedaço de mula?
E riu. Ficava bonito quando
ria, os dentes bem parelhos e branquinhos.
‒ Tá com fome?
‒ Não.
‒ Vem cá.
Tirou do bolso uma fatia de
pão.
‒ Toma.
‒ Não quero.
‒ Toma logo, anda.
‒ E tu?
‒ Eu o quê? Come isso.
Trinquei o pão endurecido.
Estava bom e minha boca se encheu de saliva.
‒ Acho que não vamos conseguir nada por hoje. De manhãzinha passa a patrola do DAER, eles puxam a gente.
Atirou a erva longe e entrou na
cabina.
‒ Ô Moleza, vamos tomar um
chimarrão?
Fiz que sim. Ao me aproximar,
ele me jogou sua japona.
‒ Veste isso, vai esfriar.
A japona me dava nos joelhos e
ele riu de novo, mostrando os dentes.
‒ Que bela figura.
A cara dele era tão boa e tão amiga
que eu tinha uma vontade enorme de me atirar nos seus braços, de lhe dar um
beijo. Mas receava que dissesse: como é, Moleza, tá ficando dengoso?
Então aguentei firme ali no barro,
com as abas da japona me batendo nas pernas, até que ele me chamou outra vez:
‒ Como é, vens ou não?
Aí eu fui.
*****
(Do livro “Os cem melhores contos brasileiros do século”,
seleção de Ítalo Moriconi – Objetiva)
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