quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Idolatria


Sérgio Faraco


Eu olhava para a estrada e tinha a impressão de que jamais na vida chegaríamos a Nhuporã. Que pedaço brabo. O camaleão se esfregava no chassi e o pai praguejava:

 ‒ Caminho do diabo!

Nosso Chevrolet era um trinta e oito de carroceria verde-oliva e cabina da mesma cor, só um nadinha mais escura. No para-choque havia uma frase sobre amor de mãe e em cima da cabina uma placa onde o pai anunciava que fazia carreto na cidade, fora dela e ele garantia, de boca, que até fora do estado, pois o Chevrolet não se acanhava nas estradas desse mundo de Deus.

Mas o caminho era do diabo, ele mesmo tinha dito. A pouco mais de légua de Nhuporã o caminhão derrapou, deu um solavanco e tombou de ré na valeta. O pai acelerou, a cabina estremeceu. Ouvíamos os estalos da lataria e o gemido das correntes no barro e na água, mas o caminhão não saiu do lugar. Ele deu um murro no guidom.

‒ Puta merda.

Quis abrir a porta, ela trancou no barranco.

‒ Abre a tua.

A minha também trancava e ele se arreliou:

‒ Como é, ô Moleza!

Empurrou-a com violência.

‒ Me traz aquelas pedras. E vê se arranca um feixe de alecrim, anda.

Agachou-se junto às rodas e começou a fuçar, jogando grandes porções de barro para os lados. Mal ele tirava, novas porções vinham abaixo, afogando as rodas. Com a testa molhada, escavava sem parar, suspirando, praguejando, merda isso e merda aquilo, e de vez em quando, com raiva, mostrava o punho para o caminhão.

O pai era alto, forte, tinha o cabelo preto e o bigode espesso. Não era raro ele ficar mais de mês em viagem e nem assim a gente se esquecia da cara dele, por causa do nariz, chato como o de um lutador. Bastava lembrar o nariz e o resto se desenhava no pensamento.

‒ Vamos com essas pedras!

Por que falava assim comigo, tão danado? As pedras, eu as sentia dentro do peito, inamovíveis.

‒ Não posso, estão enterradas.

‒ Ah, Moleza.

Meteu as mãos na terra e as arrancou uma a uma. Carreguei-as até o caminhão, enquanto ele se embrenhava no capinzal para pegar o alecrim.

‒ Pai, pai, o caminhão tá afundando!

A cabeça dele apareceu entre as ervas.

‒ Não vê que é a água que tá subindo, ô pedaço de mula?

E riu. Ficava bonito quando ria, os dentes bem parelhos e branquinhos.

‒ Tá com fome?

‒ Não.

‒ Vem cá.

Tirou do bolso uma fatia de pão.

‒ Toma.

‒ Não quero.

‒ Toma logo, anda.

‒ E tu?

‒ Eu o quê? Come isso.

Trinquei o pão endurecido. Estava bom e minha boca se encheu de saliva.

‒ Acho que não vamos conseguir nada por hoje. De manhãzinha passa a patrola do DAER, eles puxam a gente.

Atirou a erva longe e entrou na cabina.

‒ Ô Moleza, vamos tomar um chimarrão?

Fiz que sim. Ao me aproximar, ele me jogou sua japona.

‒ Veste isso, vai esfriar.

A japona me dava nos joelhos e ele riu de novo, mostrando os dentes.

‒ Que bela figura.

A cara dele era tão boa e tão amiga que eu tinha uma vontade enorme de me atirar nos seus braços, de lhe dar um beijo. Mas receava que dissesse: como é, Moleza, tá ficando dengoso?

Então aguentei firme ali no barro, com as abas da japona me batendo nas pernas, até que ele me chamou outra vez:

‒ Como é, vens ou não?

Aí eu fui.

*****

(Do livro “Os cem melhores contos brasileiros do século”,
seleção de Ítalo Moriconi – Objetiva)

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