Epitáfio
Nikos Kazantzakis
Um hindu lutou muito tempo contra a corrente que carregava seu barco para a catarata. Quando o grande lutador compreendeu que todo esforço era em vão, cruzou os remos e se pôs a cantar...
Ah! Que a
minha vida se torne este canto: “Não espero mais. Não creio mais. Sou livre!”
O sistema
Eduardo Galeano
que programa o computador que alarma o banqueiro que alerta o embaixador que janta com o general que ordena ao presidente que intima o ministro que ameaça o diretor-geral que humilha o gerente que grita com o chefe que pisa no empregado que despreza o operário que maltrata a mulher que bate no filho que chuta o cachorro.
A árvore eterna
Guilherme de Almeida
Ela foi plantada do Éden, há seis mil
anos. Era uma boa macieira, de sombra refrescante e fruto ácido, com um
interessante diabo, em forma de cobra, enrolado no seu tronco, para enfeitá-lo
ainda mais, como uma pulseira num abraço. E tinha um encanto máximo, essa
Árvore: o de ser proibida. Por isso mesmo, houve dentadas no seu fruto e beijos
na sua sombra; e, no seu tronco, alguém gravou um coração com estas iniciais
dentro: “A.E.”...
Mentiras
Fernando Bonassi
“Eu minto. Minto sobre o passado, sobre o presente e o futuro. As mentiras saem de mim de forma tão natural, que se incorporam à minha vida com o peso de experiências. Filmes que não vi, lugares que não visitei, mulheres que não tive, presentes que não ganhei, sofrimentos que não passei. Minto assim, sem nenhum charme. Diria mesmo que, vez por outra, os acontecimentos são mais interessantes que as mentiras que coloco no lugar. Minto pra cacete. Minto inutilmente. Minto de me envergonhar. Agora mesmo eu nem sei se estou falando a verdade...”.
Metamorfose
Ramon Gómez de La Serna
Gazel não era rude, mas costumava dizer coisas violentas e inesperadas durante o seu silencioso idílio com Esperanza. Trabalhara muito naquela tarde e estava nervoso, com desejos de dizer uma grande frase qualquer que surpreendesse e assustasse sua mulher. Sem erguer os olhos do trabalho que estava fazendo, disse-lhe, de súbito: “Vou lhe atravessar com um alfinete como se você fosse uma borboleta!”
Esperanza não lhe deu resposta, mas,
quando Gazel olhou para trás, viu pela janela aberta fugir uma borboleta, que
se perdia na distância, enquanto o quarto submergia na sombra.
O labirinto
Jorge Luis Borges
Este é o labirinto de Creta. Este é o
labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta
cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de
homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações. Este é o labirinto
de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com
cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria
Kodama e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o
Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede
de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos
naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto.
Desista
Franz Kafka
Era de manhã bem cedo, as ruas limpas
e vazias, eu ia para a estação ferroviária. Quando confrontei um relógio de
torre com o meu relógio, vi que já era muito mais tarde do que havia
acreditado, precisava me apressar bastante; o susto dessa descoberta fez-me
ficar inseguro no caminho, eu ainda não conhecia bem aquela cidade, felizmente
havia um guarda por perto, corri até ele e perguntei-lhe sem fôlego pelo
caminho. Ele sorriu e disse:
- De
mim você quer saber o caminho?
- Sim, eu disse, uma vez que eu mesmo não posso encontrá-lo.
- Sim, eu disse, uma vez que eu mesmo não posso encontrá-lo.
- Desista, desista, disse
ele, e virou-se com um grande ímpeto, como as pessoas que querem estar a sós
com o seu riso.
As linhas da mão
Julio Cortázar
De uma carta jogada em cima da
mesa sai uma linha que corre pela tábua de pinho e desce por uma perna. Basta
olhar bem para descobrir que a linha continua pelo assoalho, sobe pela parede,
entra numa lâmina que reproduz um quadro de Boucher, desenha as costas de uma
mulher reclinada num divã e afinal foge do quarto pelo teto e desce pelo fio do
para-raios até a rua. Ali é difícil segui-la por causa do trânsito, mas
prestando atenção a veremos subir pela roda do ônibus estacionado na esquina e
que vai até o porto. Lá ela desce pela meia de náilon da passageira mais loura,
entra no território hostil das alfândegas, sobe e rasteja e ziguezagueia até o
cais principal, e aí (mas é difícil enxergá-la, só os ratos a seguem para subir
a bordo) alcança o navio de turbinas sonoras, corre pelas tábuas do convés de
primeira classe, passa com dificuldade a escotilha maior, e numa cabine onde um
homem triste bebe conhaque e ouve o apito da partida, sobe pela costura da
calça, pelo jaleco, desliza até o cotovelo, e com um derradeiro esforço se
insere na palma da mão direita, que nesse instante começa a fechar-se sobre a
culatra de um revólver.
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