quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

A morte de um gênio da música brasileira

Ari Barroso


Em fins de janeiro de 1964, Ari teve de ser removido urgentemente para o Instituto Cirúrgico Gabriel de Lucena, em estado gravíssimo. Nos dias que lá permaneceu, quase não reconhecia as pessoas da família, apresentando poucos instantes de lucidez. Nestes momentos, cantarolava O sole mio. Mariúza aproveitava para cantar músicas do pai, mas ele não reagia. Então, cantava O sole mio forçando uma desafinação. Ari reclamava imediatamente. As visitas estavam proibidas, mas Luís Peixoto achou que deveria, assim mesmo, ir até lá. No caminho, comprou um sapato que só foi experimentar no táxi. Coube direitinho no pé. Deu o sapato velho ao motorista e, no Instituto Cirúrgico, percorreu o corredor com muito cuidado, para que suas pisadas com o sapato novo não incomodassem os doentes. Recebido por Ivone (esposa de Ari) que já não tinha esperança de ver o marido recuperado, foi informado, mais uma vez, de que as visitas estavam proibidas, mas a própria Ivone considerou a proibição desnecessária, tratando-se de um amigo tão antigo e tão querido. Luís entrou no quarto na ponta dos pés, mas, apesar da sua preocupação, o sapato rangia. Ari estava deitado de lado, de costas para a porta. Luís Peixoto aproximou-se, olhou para o rosto do doente, fez um rápido afago nos seus cabelos e retirou-se, com muito cuidado. Antes de chegar à porta, observou que Ari se mexia. Ele parou. Ari virou-se de frente para ele, apertou os olhos, tentando reconhecê-lo, trocaram olhares e o visitante foi contemplado com a manifestação de um legítimo Ari Barroso:

− Assim não é possível, seu Luís! Como é que você visita um moribundo com um sapato desses?

Às 21h50min de 9 de fevereiro de 1964, dia em que Carmen Miranda estaria completando 55 anos de idade, Ari Barroso morreu. “Foi um homem de sorte até na morte, pois dizem que cirrose provoca dores tremendas em todo o corpo. Mas ele não sofreu nada. No fim, teve um colapso – e pronto”, relatou Ivone, no livro Ari Barroso, um turbilhão!. Era domingo de carnaval e, na Avenida Presidente Vargas, a multidão assistia ao desfile das escolas de samba. Naquele instante, preparava-se para desfilar a Escola de Samba Império Serrano com um enredo extremamente significativo para o momento: Aquarela Brasileira. Eu (Sérgio Cabral) estava na avenida e sou testemunha da emoção que tomou conta de todos – dos sambistas e do público – quando foi divulgada a notícia da morte de Ari Barroso. O Império Serrano ainda estava desarrumado e sofria a ameaça de ter pontos descontados pelo júri, por atrasar a sua apresentação. O presidente da escola, Moacir Rodrigues, dirigiu-se à comissão julgadora (na época, os jurados não atuavam separados. Ficavam todos no mesmo local) e pediu que perdoassem o atraso: os sambistas, emocionados com a morte do grande compositor, estavam com dificuldades para dar início ao desfile. E havia a incrível coincidência de desfilar com um enredo intitulado Aquarela Brasileira. Os jurados consideraram perfeitamente aceitável a justificativa apresentada por Moacir. O fato é que o Império Serrano fez um dos mais emocionantes desfiles da sua história, para o qual contribuiu, sem dúvida, a música de Silas de Oliveira, uma das obras-primas do samba-enredo.

O corpo de Ari Barroso foi levado para a Igreja de Santa Teresinha. Ao sair do carro, diante da igreja, Flávio Rubens (filho de Ari) foi abordado pelos integrantes de um bloco carnavalesco do Morro da Babilônia, que voltavam para casa, depois da folia.

− O que houve, Flávio? – perguntou um deles.

− Papai morreu. O velório vai ser aqui, na igreja.

Os foliões não só manifestaram a sua dor pela morte do ilustre vizinho como também colocaram-se imediatamente à disposição para preparar o recinto para o velório. Já naquela noite, começaram a chegar os companheiros da música popular, do rádio e da televisão, do Flamengo, gente de toda a cidade, além de carnavalescos fantasiados, que entravam na igreja, depois de pedirem permissão à família. No dia seguinte, às 17h30min, com o caixão coberto pela bandeira do Flamengo, Ari Barroso foi sepultado no Cemitério São João Batista (sepultura 18.877, quadra 1). Naquele momento, o saxofonista Souza Lima pegou o instrumento e executou o mais pungente solo de Aquarela do Brasil que se poderia imaginar.

(Texto do livro “No Tempo de Ari Barroso”, de Sérgio Cabral)

P.S. Resultado do Carnaval de 1964, no Rio de Janeiro:

Campeã:         Portela       - 59,0
Vice-campeã: Salgueiro   - 58,0
3º lugar: Mangueira          - 49,0
4º lugar: Império Serrano - 44,0  


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