Por uma marca
Juremir Machado das
Silva
Eu nunca tinha visto um cadáver até
então. Tudo aconteceu em poucos segundos. Mas só depois de muita volta numa
noite de inverno que mais parecia uma sinfonia em homenagem à solidão. Tudo na
paisagem era melancolia. Foi em agosto. Talvez não fosse tão triste assim quanto
estou descrevendo, mas sempre tive esta tendência para o sombrio. O baile era
depois do rincão. Pegamos um ônibus velho e seguimos por uma estrada esburacada
que serpenteava entre as coxilhas ao cair da tarde. Eu me sentei na cadeira do
cobrador me sentindo honrado por essa possibilidade. Admirava profundamente os
domadores, os tropeiros, os motoristas, os cobradores e todas aquelas pessoas
que ganhavam a vida trabalhando duro e quase nunca perdendo uma festa.
O ônibus atolou na travessia de um
passo de águas lerdas e turvas. Descemos. Molhei as mãos. Senti o frio úmido me
penetrar na alma. A noite já se insinuava aveludadamente. Fiquei olhando uma
árvore desfolhada que se dobrava contra o verde dos campos e o azul pesado do
céu como um rabisco ou uma figura cansada. Um homem magro, alto e de barba rala
se aproximou de mim como se buscasse companhia.
− Te gusta la noche cayendo?
− Não posso falar contigo – eu disse
e me afastei.
Era o Tupamaro*. A ordem era nunca
conversar com ele. Rapaz bonito, de olhos muito escuros, fazia as gurias
suspirarem. Havia surgido como que do nada e nesse nada permanecia, pois estava
proibido se aproximar dele ou aceitar as suas tentativas de contato. Eu o via
perambulando pelos campos que eu também gostaria de atravessar e sentia certa
inveja. Esse hábito fazia dele, segundo as vozes mais sábias, um perigo ainda
maior. Ninguém caminhava. As velhas diziam:
− Fica andando a esmo. É louco ou
tupamaro. Onde se viu, sem cavalo.
Os campos eram cheios de ameaças:
cobras, bois brabos, sangas fundas, fantasmas. O Tupamaro não tinha medo.
Parecia também indiferente ao desprezo de todos nós. Sorria, cumprimentava e
puxava conversa. Não perdia carreiras, bailes e carteados. Ficava olhando. Esse
olhar sem participar tornava-o ainda mais estranho. Nada parecia, contudo, mais
esquisito e desonroso do que andar a pé pelos campos. Pior mesmo talvez só
fosse a nudez. Veio um trator puxar o ônibus.
Chegamos ao baile com a noite
fechada. Um gaiteiro e um violonista puxavam músicas ligeiras para esquentar os
convivas. O dono do salão oferecia pincel, sabão e navalha para quem quisesse
se barbear. Cabeludo não entrava. Negro também não. “Fresco”, termo que se
aplicava aos suspeitos de homossexualidade, não chegava até a porta. Mulher
podia dançar com mulher. Homem com homem nem se imaginava. As regras eram
rigorosas e compartilhadas moralmente pela maioria. Pela meia-noite estourou o
primeiro “bochincho”. Um negro alto, espadaúdo, de olhos fulminantes, de terno
e gravata, algo raro, forçou a entrada:
− Por que não posso entrar?
− Negro não entra − vociferou o
patrão.
O negro ficou olhando o vazio. Talvez
digerisse a humilhação. Havia uma imensa tristeza naquele olhar vago que se
espichava contendo certamente a imensa raiva que borbulhava incendiando suas
entranhas.
− No es un ser humano como los demás?
Fez um silêncio de estupor e
indignação. Quem se atrevia? Era o Tupamaro. Senti que me puxavam para trás. Em
poucos segundos o tempo fechou. O negro e o Tupamaro foram enxotados a
“manotaços”. Guardei daquele começo turbulento duas vozes vazando da noite que
sangrava:
− Todos somos iguales.
− Eu volto.
O baile seguiu como se nada tivesse
acontecido. Pelas três da manhã, quando eu já quase dormia encarangado numa
cadeira de palha, um gaúcho de bastos bigodes e olhos de falcão, mancando da
perna esquerda, aproximou-se de uma guria de faces rosadas e seios fartos.
− Me concede esta marca?
− Não. Estou comprometida.
− Esta é a primeira égua que me nega
o estribo – gritou o homem.
Gritou e já foi abalroado pela
manopla de um gigante. O homem estatelou-se no chão com a boca sangrando. Caiu
e puxou um revólver. Antes que pudesse atirar ou ameaçar, ouviu-se um tiro.
Morreu ali. Nunca me esquecerei de como tiraram o corpo pela janela dos fundos.
Estranhamente a história também morreu. Vez ou outra, alguém dizia:
− Foi coisa do Tupamaro.
Ainda tenho nas retinas esse primeiro
cadáver de bigodes generosos e olhos esbugalhados. O tempo passa para nosso
alívio. Anos depois, num baile de clube sofisticado da cidade, ouvi uma voz que
parecia ressurgir da minha infância. Um negro fardado perguntava:
− Já ouviram falar da Lei Afonso
Arinos?
− Negro aqui não entra.
− Sou oficial do Exército. Conheço a
lei. Vou entrar.
Entrou. Foi um escândalo. Até hoje se
fala disso. Eu ouço:
− Te gusta la noche cayendo?
*****
(Crônica do Correio
do Povo, abril de 2018)
*Tupamaro: Membro do Movimento
Nacional de Libertação do Uruguai, fundado em 1963 por Raul Sendic, que
unificou os diversos grupos revolucionários esquerdistas daquele país.
P.S. Esta crônica foi ambientada
na fronteira do Brasil com Uruguai, entre as cidades de Santana do Livramento e
Rivera, divididas por uma fronteira seca, separadas por apenas uma rua.
Muito bom!!
ResponderExcluir