segunda-feira, 16 de abril de 2018

Uma crônica gaúcha

Por uma marca

Juremir Machado das Silva


Eu nunca tinha visto um cadáver até então. Tudo aconteceu em poucos segundos. Mas só depois de muita volta numa noite de inverno que mais parecia uma sinfonia em homenagem à solidão. Tudo na paisagem era melancolia. Foi em agosto. Talvez não fosse tão triste assim quanto estou descrevendo, mas sempre tive esta tendência para o sombrio. O baile era depois do rincão. Pegamos um ônibus velho e seguimos por uma estrada esburacada que serpenteava entre as coxilhas ao cair da tarde. Eu me sentei na cadeira do cobrador me sentindo honrado por essa possibilidade. Admirava profundamente os domadores, os tropeiros, os motoristas, os cobradores e todas aquelas pessoas que ganhavam a vida trabalhando duro e quase nunca perdendo uma festa.

O ônibus atolou na travessia de um passo de águas lerdas e turvas. Descemos. Molhei as mãos. Senti o frio úmido me penetrar na alma. A noite já se insinuava aveludadamente. Fiquei olhando uma árvore desfolhada que se dobrava contra o verde dos campos e o azul pesado do céu como um rabisco ou uma figura cansada. Um homem magro, alto e de barba rala se aproximou de mim como se buscasse companhia.

− Te gusta la noche cayendo?

− Não posso falar contigo – eu disse e me afastei.

Era o Tupamaro*. A ordem era nunca conversar com ele. Rapaz bonito, de olhos muito escuros, fazia as gurias suspirarem. Havia surgido como que do nada e nesse nada permanecia, pois estava proibido se aproximar dele ou aceitar as suas tentativas de contato. Eu o via perambulando pelos campos que eu também gostaria de atravessar e sentia certa inveja. Esse hábito fazia dele, segundo as vozes mais sábias, um perigo ainda maior. Ninguém caminhava. As velhas diziam:

− Fica andando a esmo. É louco ou tupamaro. Onde se viu, sem cavalo.

Os campos eram cheios de ameaças: cobras, bois brabos, sangas fundas, fantasmas. O Tupamaro não tinha medo. Parecia também indiferente ao desprezo de todos nós. Sorria, cumprimentava e puxava conversa. Não perdia carreiras, bailes e carteados. Ficava olhando. Esse olhar sem participar tornava-o ainda mais estranho. Nada parecia, contudo, mais esquisito e desonroso do que andar a pé pelos campos. Pior mesmo talvez só fosse a nudez. Veio um trator puxar o ônibus.

Chegamos ao baile com a noite fechada. Um gaiteiro e um violonista puxavam músicas ligeiras para esquentar os convivas. O dono do salão oferecia pincel, sabão e navalha para quem quisesse se barbear. Cabeludo não entrava. Negro também não. “Fresco”, termo que se aplicava aos suspeitos de homossexualidade, não chegava até a porta. Mulher podia dançar com mulher. Homem com homem nem se imaginava. As regras eram rigorosas e compartilhadas moralmente pela maioria. Pela meia-noite estourou o primeiro “bochincho”. Um negro alto, espadaúdo, de olhos fulminantes, de terno e gravata, algo raro, forçou a entrada:

− Por que não posso entrar?

− Negro não entra − vociferou o patrão.

O negro ficou olhando o vazio. Talvez digerisse a humilhação. Havia uma imensa tristeza naquele olhar vago que se espichava contendo certamente a imensa raiva que borbulhava incendiando suas entranhas.

− No es un ser humano como los demás?

Fez um silêncio de estupor e indignação. Quem se atrevia? Era o Tupamaro. Senti que me puxavam para trás. Em poucos segundos o tempo fechou. O negro e o Tupamaro foram enxotados a “manotaços”. Guardei daquele começo turbulento duas vozes vazando da noite que sangrava:

− Todos somos iguales.

− Eu volto.

O baile seguiu como se nada tivesse acontecido. Pelas três da manhã, quando eu já quase dormia encarangado numa cadeira de palha, um gaúcho de bastos bigodes e olhos de falcão, mancando da perna esquerda, aproximou-se de uma guria de faces rosadas e seios fartos.

− Me concede esta marca?

− Não. Estou comprometida.

− Esta é a primeira égua que me nega o estribo – gritou o homem.

Gritou e já foi abalroado pela manopla de um gigante. O homem estatelou-se no chão com a boca sangrando. Caiu e puxou um revólver. Antes que pudesse atirar ou ameaçar, ouviu-se um tiro. Morreu ali. Nunca me esquecerei de como tiraram o corpo pela janela dos fundos. Estranhamente a história também morreu. Vez ou outra, alguém dizia:

− Foi coisa do Tupamaro.

Ainda tenho nas retinas esse primeiro cadáver de bigodes generosos e olhos esbugalhados. O tempo passa para nosso alívio. Anos depois, num baile de clube sofisticado da cidade, ouvi uma voz que parecia ressurgir da minha infância. Um negro fardado perguntava:

− Já ouviram falar da Lei Afonso Arinos?

− Negro aqui não entra.

− Sou oficial do Exército. Conheço a lei. Vou entrar.

Entrou. Foi um escândalo. Até hoje se fala disso. Eu ouço:

− Te gusta la noche cayendo?

*****

(Crônica do Correio do Povo, abril de 2018)

*Tupamaro: Membro do Movimento Nacional de Libertação do Uruguai, fundado em 1963 por Raul Sendic, que unificou os diversos grupos revolucionários esquerdistas daquele país.

P.S. Esta crônica foi ambientada na fronteira do Brasil com Uruguai, entre as cidades de Santana do Livramento e Rivera, divididas por uma fronteira seca, separadas por apenas uma rua.


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