quarta-feira, 18 de julho de 2018

O diálogo da chibata

Sebastião Nery


Acima, a foto do marinheiro João Cândido, que comandou o “Minas Gerais” e serviu de Almirante a toda esquadra revoltada.

Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga, vulgo Princesa Isabel, recebeu do conselheiro João Alfredo Correia, chefe do governo, a lei que “abolia a escravidão sem indenização” e sancionou, no dia 13 de maio de 1888, uma bela data da história do Brasil.

Era a “Lei Áurea”. Por causa dela, o Papa Leão XIII a condecorou com a Rosa de Ouro, entregue em 28 de setembro de 1888 pelo Núncio Apostólico, com discurso do bispo baiano Dom Macedo Costa.

E a partir de então todo brasileiro passou a abominar a escravidão? Nem todos. Os barões da terra, da cana, do café, por motivos óbvios. Perdiam o trabalho escravo. E os barões da alma pela perpetua malignidade de grande parte do bicho homem, que só os séculos vão curando.

Marinha

Para espanto e repulsa, ainda há muitos que pensam que escravizar era justo. No dia 9 de março de 2008, já 120 anos depois, na “Folha de S. Paulo”, Marcelo Beraba publicou uma nota do comando da Marinha dizendo que a revolta de 1910 (contra espancamentos e mortes de marinheiros nos navios da Marinha) “foi um triste episódio da história, uma rebelião ilegal (sic), sem qualquer amparo moral ou legítimo (sic), que não pode ser considerado como ato de bravura ou de caráter humanitário”.

Dizia a estapafúrdia nota da Marinha que “a reivindicação do fim dos castigos corporais deveria ter sido encaminhada por meio do exercício da argumentação e, sobretudo do diálogo (sic) entre as partes”.

Queriam o “diálogo” do carrasco com a vítima, da chibata com o lombo, do porrete com a cabeça, da guilhotina com o pescoço. Ridículo alegar que não sabiam o que acontecia nos dantescos porões dos navios.

Rui Barbosa

Os fatos já pertencem à historia, os documentos estão ai, nas próprias gavetas da Marinha, para quem quiser rever, conferir, comprovar. É só ler. Rui Barbosa denunciava da tribuna do Senado:

– “Extinguimos a escravidão sobre a raça negra, mantemos, porém, a escravidão da raça branca entre os servidores da Pátria”.

Na Câmara, o alagoano Aureliano Candido Tavares Bastos, meu patrono (dos ex-seminaristas), jornalista no Rio (escrevia “Cartas do Solitário” no “Correio Mercantil”), deputado (o mais jovem da legislatura de 1861), oficial da Secretario da Marinha, “um dos grandes pensadores políticos brasileiros, escritor e publicista de visão” (Enciclopédia Britânica), interpelou na Câmara o ministro da Marinha:

– “E o emprego dos castigos corporais? Não será possível acabar gradualmente com esses castigos lamentáveis e vergonhosos”?

Tortura

Gastão Penalva escritor e antigo oficial da Marinha, contou:

− “Um castigado suportou com bravura mais de cem pancadas, com violação da lei que previa somente 25. Depois, não pôde mais. Atirou-se de chofre no convés chorando como um perdido. Esperneava como animal peado. Estrebuchava, ao uivar, de olhos vidrados para o céu sem nuvens. O severo oficial comandante ordenou:

− “Recolha-o à enfermaria.”

“Embora no segundo dia da República o decreto nº 3 de 16 de novembro de 1889 declarasse abolido o açoite na Armada, havia um mestre nesse desumano sistema de tortura, Alípio, o carrasco do “Minas Gerais”:

− “O bandido apanhava uma corda de linho, atravessava-a de pequenas agulhas de aço, das mais resistentes e, para inchar a corda, punha-a de molho para aparecerem apenas as pontas das agulhas. O comandante, depois do toque de silêncio, lia uma proclamação. Tiravam as algemas das mãos do infeliz e o suspendiam nu da cintura para cima. E Alípio começava a aplicar os golpes. O sangue escorria. O paciente gemia, suplicava, mas o facínora prosseguia carniceiramente o seu mister degradante. Os tambores, batidos com furor, sufocavam os gritos. Muitos oficiais voltavam o rosto para o lado. Todos estavam de luvas e armados de suas espadas. A marinheirada, com repulsa e indignação, murmurava:

– “Isso vai acabar”!

Covardia

E acabou. Era esse o “diálogo” que alguns continuam defendendo. “O marinheiro cearense Marcelino Menezes recebeu 250 chibatadas aos olhos de toda a tripulação, formada no convés do “Minas Gerais”. Em meio ao flagelo, desmaiou, mas o açoite continuou. Era 22 de novembro de 1910. 2.300 marinheiros se rebelaram e assumiram os navios, sob o comando do marinheiro João Cândido:

– “Um marinheiro formidável, escreveu Gilberto Amado, testemunha. Não bombardeou nem teve um gesto de vingança”.

O Congresso interveio, houve anistia. Veio a vingança covarde, “o massacre da Ilha das Cobras, com dezenas de cadáveres de marinheiros e fuzileiros, a morte por asfixia a cal de quase duas dezenas de aprisionados em suas masmorras, e a tragédia do navio “Satélite”: fuzilamentos sumários, das costas de Pernambuco ao Amazonas, de 400 infelizes”.

Edmar Morel

Essa história toda está no livro clássico de Edmar Morel, um dos maiores jornalistas brasileiros de todos os tempos, “A Revolta da Chibata”, cuja 5ª edição, documentada, ampliada com as memórias de João Cândido, foi lançada por seu neto, o brilhante historiador Marco Morel, com prefácio de Evaristo de Moraes Filho, em bela edição da “Paz e Terra”, comemorativa dos 50 anos da primeira, em 1959. Imperdível.

(Artigo publicado em setembro de 2011)

(Do Blog Tribuna da Internet)


João Cândido participou e comandou a Revolta dos Marinheiros do Rio de Janeiro (Revolta da Chibata) no ano de 1910, movimento que trouxe benefícios aos marinheiros, com o fim dos castigos corporais na Marinha, mas que trouxe prejuízos a João Cândido, que foi expulso e renegado, vindo a trabalhar como timoneiro e carregador em algumas embarcações particulares, sendo depois demitido definitivamente de todos os serviços da Marinha por intervenção de alguns oficiais.

O “Almirante Negro”, como João Cândido ficou conhecido, morreu aos 89 anos e teve ao todo 11 filhos ao longo dos três casamentos. Faleceu na cidade de São João do Meriti, no Rio de Janeiro.


Na Praça 15, bem próximo às águas da Baía de Guanabara (foto acima), temos a estátua que homenageia João Cândido, também chamado “O Almirante Negro”, codinome que, até hoje, a Marinha do Brasil não aceita.



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