quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Quanto dói uma saudade

Nei Lopes


Um dos maiores violonistas anônimos do subúrbio carioca foi o Athaúde - com “th”, como exigia. Mas o que tinha de cobra, tinha de baixo astral.

Papo bom pra ele, era doença, epidemia, catástrofe. E a introdução preferida de seus papos era a célebre “sabe quem morreu?”.

Essa opção preferencial pelo fúnebre Athaúde levava consigo em seus endereços, na medida em que o tempo ia passando e seus já parcos recursos iam escasseando ainda mais. Tanto que da rua Real Grandeza, onde nasceu, foi morar no Catumbi, depois no Caju, depois em lnhaúma, depois na Cacuia, depois no lrajá (na Freguesia, que no Pau-Ferro todo mundo é vivo!), depois em Ricardo de Albuquerque... até seu repouso eterno no Murundu, em Realengo.

Mas o caso é que, debaixo daquela sua mortalha roxa e amarela, Athaúde também usava uma máscara deste tamanho. E isto porque se sabia quase um Zé Menezes - tocava todos os instrumentos de corda, “menos harpa e relógio”, como, passando pelo tenor, que a gente chamava de “viola americana” e pelo banjo, que Seu Acácio da Venda achava que era um  “pandeiro de rabo”. E, aí, sabendo que abafava, ficava dando uma de virtuose pobre-coitado:

- Eu não toco nada! Você precisava ver meu finado irmão...

Esse irmão falecido, que a gente nunca soube ao certo se era uma saudade ou uma desculpa, não saía da nossa roda - é óbvio - de choro: “Lamento”, “Tristezas do Sólon”, “Saxofone Por Que Choras?”, “Bonifrates de Muletas”, “Chorando baixinho”, “Quanto Dói Uma Saudade”, “Tristeza de Um Violão”, eram as preferidas do Athaúde, naquele seu interminável in memoriam.

- Porra, toca “Brasileirinho”, ô Ataíde! - esbravejou o Fornalha já cheio de timbuca, naquela extemporânea e blasfema roda formada, de improviso, na Sexta-feira da Paixão.

- “Ataíde”, não! A-tha-ú-de! Com “th”. E “Brasileirinho” é choro de cavaco - fez doce o lúgubre instrumentista mascarado.

- Então, pega o cavaco, ô mão de vaca! Tu brincas nas onze, que eu sei! Deixa de modéstia, ô Segóvia! botou pilha o Jorge Bagunça, debochado como ele só. Mas o baixo astral foi irredutível:

- Quando eu perdi meu irmão, jurei nunca mais pegar no cavaquinho.

Acontece que um dia - sei lá o que houve, se ganhou no bicho, se comeu alguém, se bebeu, se fumou, se cheirou - o Athaúde chegou no boteco do Zé Calcinha completamente diferente. Ria, falava com todo mundo, chegou até a passar a mão na bunda da Dona Alzira que, como sempre, não entendeu nada. E, pra acabar com o baile, tomou o cavaco da mão do Vavá, riscou o tom e solou um “Brasileirinho” com uma rapidez, uma destreza e uma alegria nunca vistas, de São Cristóvão a Padre Miguel.

Foi nessa que o sacana do Jorge Bagunça chegou, não acreditou no que viu, pediu uma Faixa Azul, encheu um copo, tomou um gole, limpou a espuma do bigode (naquele tempo cerveja tinha espuma), foi-se chegando devagarzinho pra roda e, no último acorde, no fecha, naquela do “tchan-tchan”, berrou na alça da orelha do Athaúde:

- Irmão desnaturado!!!

 *****

Nei Lopes (1942) é escritor, compositor, pesquisador das culturas da Diáspora Africana, advogado, e mora em Vila Isabel, Rio de Janeiro. Além dos sambas deliciosos e de grande sucesso que fazem a alegria dos nossos ouvidos, é defensor e ativo participante do movimento pela igualdade de direitos da raça negra. Colabora com crônicas para jornais e revistas cariocas. Elas são, realmente, a cara do Rio.

Texto extraído do jornal “Direitos Já”, órgão oficial da AMAR-SOMBRAS - Associação de Músicos, Arranjadores e Regentes (Sociedade Musical Brasileira) - Rio de Janeiro, para o qual o autor colabora regularmente. (Material cedido por Regina Werneck).

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