Nei Lopes
Um dos maiores violonistas anônimos
do subúrbio carioca foi o Athaúde - com “th”, como exigia. Mas o que tinha de
cobra, tinha de baixo astral.
Papo bom pra ele, era doença,
epidemia, catástrofe. E a introdução preferida de seus papos era a célebre “sabe
quem morreu?”.
Essa opção preferencial pelo fúnebre
Athaúde levava consigo em seus endereços, na medida em que o tempo ia passando
e seus já parcos recursos iam escasseando ainda mais. Tanto que da rua Real
Grandeza, onde nasceu, foi morar no Catumbi, depois no Caju, depois em lnhaúma,
depois na Cacuia, depois no lrajá (na Freguesia, que no Pau-Ferro todo mundo é
vivo!), depois em Ricardo de Albuquerque... até seu repouso eterno no Murundu,
em Realengo.
Mas o caso é que, debaixo daquela sua
mortalha roxa e amarela, Athaúde também usava uma máscara deste tamanho. E isto
porque se sabia quase um Zé Menezes - tocava todos os instrumentos de corda, “menos harpa e
relógio”, como, passando pelo tenor, que a gente chamava de “viola americana” e
pelo banjo, que Seu Acácio da Venda achava que era um “pandeiro de rabo”. E, aí, sabendo que
abafava, ficava dando uma de virtuose pobre-coitado:
- Eu
não toco nada! Você precisava ver meu finado irmão...
Esse irmão falecido, que a gente
nunca soube ao certo se era uma saudade ou uma desculpa, não saía da nossa roda
-
é óbvio -
de choro: “Lamento”, “Tristezas do Sólon”, “Saxofone Por Que Choras?”, “Bonifrates
de Muletas”, “Chorando baixinho”, “Quanto Dói Uma Saudade”, “Tristeza de Um
Violão”, eram as preferidas do Athaúde, naquele seu interminável in memoriam.
- Porra, toca “Brasileirinho”,
ô Ataíde! -
esbravejou o Fornalha já cheio de timbuca, naquela extemporânea e blasfema roda
formada, de improviso, na Sexta-feira da Paixão.
- “Ataíde”, não! A-tha-ú-de!
Com “th”. E “Brasileirinho” é choro de cavaco - fez doce o lúgubre
instrumentista mascarado.
- Então, pega o cavaco, ô
mão de vaca! Tu brincas nas onze, que eu sei! Deixa de modéstia, ô Segóvia!
botou pilha o Jorge Bagunça, debochado como ele só. Mas o baixo astral foi
irredutível:
- Quando
eu perdi meu irmão, jurei nunca mais pegar no cavaquinho.
Acontece que um dia - sei
lá o que houve, se ganhou no bicho, se comeu alguém, se bebeu, se fumou, se
cheirou -
o Athaúde chegou no boteco do Zé Calcinha completamente diferente. Ria, falava
com todo mundo, chegou até a passar a mão na bunda da Dona Alzira que, como
sempre, não entendeu nada. E, pra acabar com o baile, tomou o cavaco da mão do
Vavá, riscou o tom e solou um “Brasileirinho” com uma rapidez, uma destreza e
uma alegria nunca vistas, de São Cristóvão a Padre Miguel.
Foi nessa que o sacana do Jorge
Bagunça chegou, não acreditou no que viu, pediu uma Faixa Azul, encheu um copo,
tomou um gole, limpou a espuma do bigode (naquele tempo cerveja tinha espuma),
foi-se chegando devagarzinho pra roda e, no último acorde, no fecha, naquela do
“tchan-tchan”, berrou na alça da orelha do Athaúde:
- Irmão
desnaturado!!!
Nei Lopes (1942) é escritor, compositor, pesquisador das culturas da Diáspora Africana, advogado, e mora
Texto extraído do jornal “Direitos Já”, órgão oficial da AMAR-SOMBRAS - Associação de Músicos, Arranjadores e Regentes (Sociedade Musical Brasileira) - Rio de Janeiro, para o qual o autor colabora regularmente. (Material cedido por Regina Werneck).
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