Felicidade de vira-latas
Diógenes, sentado em
seu barril, cercado por cães.
Pintura de Jean-Léon
Gérôme de 1860.
Onde encontrar a felicidade? Essa
pergunta vem sendo repetida ao longo do tempo. As respostas variam de acordo
com as visões de mundo daqueles que se interessaram pelo assunto. As atenções
em busca de uma luz costumam se voltar para epicuristas e estoicos. Afinal,
essa era a matéria principal do que pensavam e ensinavam. Como viver bem? Era
disso que falavam. Outro grego, porém, teve muitas coisas para dizer sobre o
bem viver: Diógenes (413 – 327
a .C.), o cínico. Uma ressalva: o cinismo antigo não era
cínico no sentido atual. O cinismo era a filosofia de Antístenes, seguidor de
Sócrates, que pregava o retorno a uma vida simples em contato com a natureza
ignorando convenções e rituais sociais. O que poderia ser melhor?
Cada filósofo grego tinha o seu lugar
de pregação, do jardim ao pórtico. Antístenes atuava no Cinosargo, ou mausoléu
do cão, um ginásio em Atenas dedicado a Hércules, o modelo dos cínicos por não
se deixar influenciar por quem quer que fosse. O cão tornou-se a figura
emblemática do cinismo, filosofia de rua. Que animal melhor para figurar
amizade e simplicidade? Diógenes queria ser enterrado como um cachorro. Em bom
português, como um vira-latas. Ser feliz era ser livre. Não depender de coisa
alguma. Muito menos do passado. Diógenes passaria à posteridade como o grande
cínico.
Quem foi de fato Diógenes: um
hedonista debochado ou um asceta rigoroso? Um festeiro desregrado, ateu e
imoral ou um precursor dos ecologistas? Um polemista temível de língua venenosa
ou um hábil retórico? Um mendigo genial vivendo nas ruas e da ajuda de
benfeitores?
Filho de um banqueiro de Sinope, ele
teria fugido para Atenas depois de ajudar o seu pai a falsificar moeda. As
histórias sobre Diógenes dão conta de um belo personagem bizarro. Por
vestimenta bastava-lhe um manto longo nem sempre muito limpo. Dispensava
calçados. Dormia dentro de um grande jarro de estocar grãos. A história, porém,
talvez por verossimilhança, transformou o jarro em tonel, que poderia também
ser uma pipa. Só não era uma casa.
Alexandre, o Grande,
e Diógenes.
Apoiava-se num cajado. Os seus bens
maiores eram uma lamparina e uma gamela ou tigela. Sábio independente,
irreverente, e incontrolável, não perdoava o pedantismo fantasioso dos seus
contemporâneos. Platão era a sua vítima predileta. Para o filósofo das formas,
o homem era um bípede sem penas. Diógenes desfilou com um galo depenado
anunciando: “Eis o homem de Platão”. Andava pelas ruas com sua lamparina
procurando a ideia de homem platônica. Masturbava-se para não precisar de
relações carnais. Quando Alexandre, o Grande, perguntou-lhe de que precisava,
teria respondido de dentro do seu jarro: “Que se afaste um pouco, pois está
tapando o sol”. Eis tudo.
“Eis o homem de Platão!”
Capturado em uma viagem marítima,
reduzido à condição de escravo, exposto à venda em leilão, teria dito ao
interessado em comprá-lo: “Posso ser um ótimo dono”. Perguntado sobre o que
sabia fazer, teria dito: “Governar homens”. Acabaria libertado pelo comprador
seduzido. Essas anedotas, com pequenas variações, são muito conhecidas e
difundidas. Diógenes, o vira-latas, morreu aos 86 anos de idade. Por ironia,
segundo alguns, de uma mordida de cachorro. Ou, mais provável, de indigestão.
Ninguém
é de Ninguém − O que buscava esse vira-latas? O que mostrava aos homens do
seu tempo? O que era a felicidade para ele? Diógenes denunciava as glórias vãs
do poder e da riqueza. Indicava que viver bem era saber não depender de
propriedades e não ter sentimento de posse. Desconfiava do amor e defendia que
ninguém era de ninguém. Pregava a liberdade sexual, a despreocupação com a
morte e com pompas fúnebres. Para que se preocupar com enterros se não se verá
coisa alguma? Era contra armas, guerras, dinheiro, símbolos de prestígio e tudo
o que considerava artifícios humanos para se engrandecer.
Defendia que homens e mulheres eram
iguais. Com tais ideias, só podia incomodar. A sua obra, “A Politeia”, sumiu.
Nas democráticas pólis onde o Cachorro viveu, cidadãos eram poucos e privilegiados.
Os homens davam as cartas. O cinosargo, onde o orgulhoso vira-latas filosofava,
era o colégio para filhos de quem não tinha cidadania. Por exemplo, o rebento
de um cidadão com uma escrava, com uma prostituta, com uma estrangeira ou
nascido fora de um casamento. A fruta não cai longe do pé. Diógenes era o
intelectual dos excluídos. Odiava instituições. Admirava o autocontrole, a
altivez, autossuficiência, o desprendimento, a liberdade, o sol.
Viveu fora da caixa. Não se via como
grego ou como cidadão de um lugar, mas como homem. Tão simples e tão difícil!
Tão antigo e tão novo! Como largar tudo para viver com tamanha simplicidade?
Parece que ele amava os cães pela falta de pudor desses bichos, que fazem suas
necessidades fisiológicas diante de qualquer um sem ligar para convenções
sociais. Ao contrário de Platão, o cínico canino só acreditava em homens
concretos e em ações.
Alexandre confessaria que gostaria de ter sido Diógenes. A
vida como sábio vira-latas foi recompensada. Ganhou lápide pomposa, quadro de
Rafael e um lugar na posteridade. A morte não o poupou da glória. O que ensinou
sobre a felicidade? Que viver basta em si mesmo.
(Juremir Machado da
Silva, Correio do Povo, outubro de 2018)
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