segunda-feira, 19 de novembro de 2018

A partilha*



Cantava, e as lágrimas rolavam-lhe em dois fios ao longo da face magra e pálida. Sofria, mas, como era preciso que o pequenino adormecesse, cantava, indo e vindo, devagar, embalando nos braços a criança. O mais velho – três anos − olhava-a risonho e, de quando em quando, cantarolava: “Estou com fome, mamãe! Estou com fome..” E o pequenito, insone, muito esperto, a boquinha colada ao peito, sugava. “Estou com fome, mamãe...”: cantarolava o outro.

Ia alta a manhã; mas, se o sol alegrava o quintalejo, que tristeza em casa! Viúva, tísica, desfigurada pela moléstia e pela fome, tímida demais para pedir esmolas, que havia de fazer a desgraçada? “Estou com fome, mamãe”; cantarolava o mais velho.

− Espera filho! Espera!

Como o pequenino adormecesse, a mãe foi pé ante pé, e deitou-o sobre um fofo colchão de panos, a um canto da casa: e o mais velho, seguindo-a, cantarolava sempre: “Estou com fome, mamãe...”

− Não faças bulha, filho: espera. E, acenando-lhe, passou à cozinha. Mas que havia de fazer?

Ardia a derradeira acha: e a mãe, os olhos rasos d‘água, pôs-se a soprar a lenha para atear o lume, enquanto o filho, que se lhe agarrava às saias, cantarolava: “Minha mãezinha... estou com fome”, − mas já contente, vendo que a chaleirinha fumegava. À mesa, porém, quando a mãe lhe apresentou a tigela e o pedacinho de pão da véspera, o pequeno fitou-a com espanto:

− Só café, mamãe?

− Só meu filho...

O pequeno, levando a colher à boca, foi repelindo a tigela, com um beicinho, prestes a chorar.

− Não chores: olha que vais acordar o maninho! Espera!

E, desabotoando o corpinho, tirou o seio farto, pojado de leite e espremeu-o, trincando os lábios descorados por onde as lágrimas corriam fio a fio, e, entregando a tigela ao filho:

− Toma, e não faças bulha!

E o pequeno, arregalando os olhos, satisfeito: “Agora sim!” pôs-se a cantarolar.

Baixinho, então, a mãe lhe disse:

− E não peças mais, ouviste? o outro é para o maninho. − E foi, pé ante pé, espiar o filho que dormia.

*****

*Do livro “Contos pátrios”, autoria de Olavo Bilac e Coelho Neto, com lições maravilhosas de educação moral e cívica, com desenhos de Vasco Lima, edição da Livraria Francisco Alves, 24ª edição, Rio de Janeiro, 1928.


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