sexta-feira, 16 de novembro de 2018

“Já se vieram!’



Pintura de Voldinei B. Lucas

Na porteira

Primeiras horas da tarde, em algum lugar no interior do Rio Grande do Sul. Meio milhar de pessoas, entre homens, mulheres e crianças, mesclam a indumentária típica do gaúcho à indumentária contemporânea. À sombra dos cinamomos, cavalos aperados. Veículos automotores aqui e ali, capotas reluzindo ao sol. Numa barraca improvisada vendem-se bebidas, bolos, doces e pastéis. É em maio, num domingo.

Passam a meio galope, ao longo dos trilhos abertos no campo raso e plano, os parelheiros que vão disputar a carreira grande. Iniciam-se as apostas, com dinheiro passando das mãos dos apostadores para as de um terceiro, de mútua confiança:

− Cinquenta mil réis no zaino!
− Topo, seu!
− Mais vinte que me sobram!
− É comigo mesmo! E tá casado!

Os corredores ensaiam as primeiras partidas na cabeceira da cancha. Espertos, aguardam o momento propício para a largada que lhes favoreça, levando vantagem já no primeiro pulo.

Dez, quinze, vinte minutos... A expectativa aumenta, enquanto as últimas apostas são fechadas. Há gente que já dá luz no zaino. Outros, mais apaixonados, luz e doble. Inquietam-se os aficcionados, olhos e corações ligados ao movimento nervoso dos cavalos. O juiz de largada, atento às investidas dos corredores até a baliza de partida, baixa de repente e num golpe rápido o lenço branco amarrado ao cabo de um relhador:

− Vaaá!!!

Seu grito perde-se na polvadeira dos cavalos que arrancam, some-se no grito maior, uníssono e instantâneo que brota da alma para os lábios dos assistentes:

Já se vieram!!!

Perde-se no tempo e no espaço o eco deste grito − síntese humanizada da paixão pela carreira de cavalos.

Desde quando? De onde? Por que caminhos, terras e mares teria chegado a carreira a esta cancha-reta perdida num rincão longínquo da fronteira gaúcha, onde homens e mulheres empolgam-se ao espetáculo da disputa em velocidade entre dois cavalos e à paixão pelo jogo?

(Do livro “Já se vieram!”, de Apparício Silva Rillo)

Uma estória*


As estórias, os causos, as mentiras e os relatos fantasiosos ou verdadeiros são parte saborosa do folclore da carreira.

Na maioria delas, especialmente na região do Estado que se limita com Argentina e Uruguai, a figura do “castelhano” esperto, valente, calaveira, destabocado ou covardão − conforme o causo, está quase sempre presente, como personagem principal ou acessória, herói ou vilão. Do mesmo modo a figura do “negro”, ora levando vantagens, ora perdendo.

Mas tantos são as estórias e os causos onde essas figuras são parte, que apenas registramos o detalhe como curiosidade.

Dentre as tantas que correm no meio dos aficcionados, conteremos a que nos parece a mais tradicional delas, de maior curso popular e que, ouvida em que zona for e de boca de quem for, conserva sempre as mesmas linhas mestras − variando apenas o local ou o município em que o contador a situa.

− Diz que há muito tempo, pras bandas do Garupá, viveram, lindeiros de campo, dois estancieiros muito ricos. Ambos, igualmente, aficcionados aos parelheiros, tendo sempre na estaca vários animais de qualidade. E, dentre eles, em certo tempo, cada um teve um parelheiro de alta exceção. Ambos, pelas canchas onde cotejaram, até além das fronteiras, não souberam jamais o que fosse perder. Imbatíveis, ambos, mas jamais haviam se encontrado na mesma cancha, não desejando, nenhum dos donos, arriscar a fama de seu cavalo contra contendor reconhecidamente poderoso.

Mas bueno, tanto foi, tanto se comentou do mútuo receio que abrigavam os dois vizinhos e, sobretudo, por não encontrarem mais cavalo algum, de parte alguma, que viesse medir pata com os seus, que resolveram, certa feita, atar uma carreira entre seus celebrados campeões.

Marcou-se prazo, local, parada e condições de largada. E, num pacto de honra, ficou firmado que o parelheiro que perdesse a carreira seria sacrificado pelo dono... E mais uma condição, que ambos se impuseram por respeito mútuo: a carreira seria julgada por eles próprios, sem intervenção de mais ninguém, nem mesmo da autoridade.

E chegou o dia do esperado encontro. Miles de pessoas na cancha preparada, gente chegada de muitas léguas, “comércio” como nunca se viu naquelas bandas.

Subiram para a cabeceira da cancha os dois campeões, lindos como figura de livro, na ponta dos cascos, músculos firmes, narinas abertas, orelhas em pé.

Para a baliza de chegada, ao passito no más, os dois vizinhos, sérios, cada qual pro seu lado, a pistola pronta para sacrifício do parelheiro que perdesse.

E a carreira estourou. E se vieram juntos, batendo orelhas, fazendo rufar o chão ao compasso rápido dos cascos. Na última meia quadra o zaino livrou cabeça sobre o douradilho, conservou a vantagem e venceu a carreira.

Tensos, mas atentos, os estancieiros − veteranos no julgamento de carreiras decididas por mínima vantagem, e, sobretudo, honrando acima de tudo a palavra mutuamente empenhada, gritaram no mesmo tempo o resultado:

− Le ganhei, vizinho!
− Me ganhou, vizinho!
− Le ganhei, vizinho!! − gritou ainda mais alto o dono do zaino vencedor.
− Me ganhou, vizinho!! − repetiu ainda com mais força o fazendeiro perdedor.

A gritaria do povaréu que vinha se despencando em direção à baliza de chegada abafava os cada vez mais fortes e repetidos: − le ganhei, vizinho!! e − Me ganhou, vizinho!!

Concordando ambos, desde o primeiro grito, mas tomado um pela emoção da vitória e o outro pelo desespero da derrota, não se entenderam nunca − achando o que gritava vitória que o vizinho também a gritava.

Pistolas à mão, furibundos, avançaram um de encontro ao outro. Berraram quase boca a boca uma última vez:

− Le ganhei, vizinho!!!
− Me ganhou, vizinho!!!

A explosão de dois tiros, o espanto do povo, os parelheiros que voltavam a galope. E a queda lenta dos dois tauras, os palas brancos manchados de um vermelho que se abria como a flor colorada das corticeiras do arroio.

E houve alguém que ainda ouviu, de uma e outra boca sufocada pelo sangue, a sentença final de dois homens de honra:

− Le ganhei... vizinho...
− Me... ganhou... vizinho...

******

Arremate

Quanta coisa a contar ainda sobre as carreiras! Das antigas canchas, dos célebres parelheiros, do corredor anão que vestia à inglesa, da petiça que nunca encontrou parelha, mesmo dentre os mais afamados parelheiros de uma outra banda do rio Uruguai, dos matungos que correram carreiras por maços de rapadura, dos guris que enfrenavam cavalos de taquara para pegadas de mentira na cancha limpa dos campestres de mato.

Mas outros como nós, hoje ou mais tarde, haverão de melhor contar o que deixamos.

E fique, como arremate final, quando se fecha a porteira que se abriu quando chegamos, esta quase paródia de um adágio mais conhecido do que o nome João:

− Enquanto égua der cria, há de viver a cancha-reta...

(Do livro “Já se vieram!”, de Apparício Silva Rillo)

*No dicionário Houaiss, “estória” data-se do século XIII e é o mesmo que “história”: narrativa de cunho popular e tradicional; história. Etimologicamente, ou seja, na origem, provém da forma inglesa “story”: narrativa, em prosa ou verso, fictícia ou não, com o objetivo de divertir/instruir o leitor, da forma latina “historia,ae”.

A questão é simples: a grafia “estória” é forma arcaica da própria Língua Portuguesa. Na época medieval, “estória” existiu ao lado de “istória”, quando ainda não havia grafia uniformizada para os nossos vocábulos – com invenções distintivas de significado. Houve ainda a forma intermediária “hestoria”.


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