Brinquedos para diversões naqueles
tempos de guri eram poucos, e nada fabricado, nada artificial ou digital como
agora, eram preparados manualmente, canivete e pulso. As brincadeiras se
desenvolviam na rua, não no sofá, ao vento, não com ar-condicionado. E um
deles, muito apreciada, era a pandorga.
Dois eram os formatos comuns: o
marimbondo pros guris, e a bomba pras gurias. O marimbondo era retangular, em
que os lados, largura e altura, guardavam a relação da divisão áurea, explicada
por nossa professora do quinto primário, pela qual, comparadas as dimensões, se
a base (largura) correspondesse a 2 e altura a 3, chamava a essa relação 2/3,
uma divisão de desequilíbrio harmonioso; e no cabeçote, um roncador; o marimbondo
roncava com o rumor de lâmina de papel no fio esticado por cana arqueada. A
bomba era redonda, com oito raios e cabeleira em sua a volta para suavizar a
circunferência; a bomba chiava pelo roçar do vento em suas franjas de papel
coladas a seu redor. Ainda, para fique equilibrada no céu, a pandorga, para que
não gire, nem coleie, instala-se um rabo de pano, e de extensão e peso a
neutralizar as forças atuantes, verticais, horizontais.
Havia outros formatos: a caixa, o
papagaio, a estrela, o barquinho; contudo os preferidos eram o marimbondo e a
bomba.
Fazer pandorga é uma arte. Utiliza-se
o bambu, aquele arbusto vegetal que nós desde pequenos chamamos de taquara, um
tubo longo e fino, muito resistente. Aberto, ao longo do eixo, retiram-se as
“canas” que, alisadas e conformadas, são próprias para formar a estrutura das
pandorgas. Finas, para não pesarem, e firmes para suportar a carga do vento.
A armação, por sua vez, consistia em
amarrar com piola duas canas principais em xis, e uma auxiliar horizontal para
fortalecer a estrutura. No entorno, para a conformação final, o fio bem
esticado. Na forração da estrutura, utilizava-se papel encerado e de cores
variadas conforme a composição desejada. A cola, para fixar o papel, era
preparada com pasta de polvilho em várias tentativas de medida e temperatura da
água para atingir a pasta com ponto de pega. Essa cola, por vezes, servia para
alisar a rude piola de remonte.
Na Fronteira, Semana Santa é a época
tradicional para remontar cometa, designação do marimbondo, comum aos
santanenses e riveirenses. Talvez por ser época de ventos, talvez por ser um
tempo de recolhimento, de afastamento até os morros da cidade em que o silêncio
favorece fugas das preocupações diárias, enquanto pelos céus se observam
coleando os marimbondos erguidos e sustentados pelo vento. Rabo coleando e,
como malandragem, nele fixadas lâminas de gilete em cruz para cortar a linha
das outras pandorgas ao roçar por ela o rabo.
Com um pouco de jeito e arte, para
que fique pronta e acabada, se monta a pandorga; mas remontar é preciso arte e
paciência. É preciso vento, é preciso lances e puxadas de linha, um barbante
não muito grosso, e que não pese demais, mas resistente para suportar a força
do vento, e quanto mais comprida, mais alto sobe o marimbondo; e quando falta
vento, roga-se a São Pedro com o estribilho: “Venha vento, seu porteiro, venha
vento, seu porteiro”. Se para o pescador a decepção é a falta de lambari, para
o cometeiro é a ânsia pelo vento. Na falta, nunca o bom remontador corre para
conseguir pressão necessária, a pandorga pode se acostumar e ser tornar uma corredeira,
e então sempre exigirá a corrida para subir.
Ajustar os tirantes, que eram três,
fixados no corpo do marimbondo: dois deles nos extremos do cabeçote e o
terceiro normalmente no cruzamento das canas que formam a estrutura, ou pouco
abaixo, conforme experiência determinava para reduzir a possibilidade de o
bicho “colear”. Os tirantes eram dispostos de tal forma a se obter o ângulo
mais favorável em relação à direção do vento para sustentação e subida da
pandorga e que as tentativas têm demonstrado ser de 60º com o horizonte. E como
estabelecer esse ângulo? Fácil, basta posicionar o corpo do marimbondo junto ao
chão, inclinar e, por ajustes, alongando ou encurtando o terceiro tirante, de
modo que o cabeçote fique afastado do piso com altura igual à metade
comprimento da pandorga.
Um específico marimbondo cruzou os
mares, andou pelos ares da América, Europa e Ásia. De início, conheceu os
abafados do morro da Vigia do Pampa Gaúcho, depois se elevou nos rarefeitos das
alturas do Pichincha, 5000
metros , junto a Quito, e no ombro do vulcão Cotopaxi, no
Equador, mais tarde, nos orientais e misteriosos de Siem Rep, no Vietnã, e nos
velhos de Espanha, que em morro ao longe, na contraluz da tarde se desenhava o
perfil do maciço de Montserrat, e quase envolto pelos úmidos do Lago Constanza,
na Alemanha. Sempre a mesma estrutura, resguardando o revestimento original,
remendado quando necessário, forrado com papel encerado, hoje difícil de
encontrar em lojas. E
num dia infeliz, se foi pelas nuvens, sumiu. Deixado preso a um poste, lá em
cima, sem cuidados e talvez cansado de tanto suportar ventos, chuviscos, velho
e desbotado por tanto sol pelas costas, desprendeu-se das amarras; nunca mais
se soube dele.
E como agora comover e incentivar o
neto ainda pequeno para essa brincadeira, se falta papel nas lojas, se cana na
cidade é escassa, se morros livres não há? A esperança está numa velha pandorga
guardada.
(Janeiro de 2019)
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