Em “Apagando Lampião − Vida e
Morte do Rei do Cangaço”, Frederico Pernambucano de Mello revela a identidade
de Santo, soldado que traiu e decapitou o capitão Virgulino em 1938.
À esquerda, o soldado Sebastião
Vieira Sandes, o Santo, em 1938, entrevistado pelo repórter Melchiades Rocha,
de A Noite: façanha revelada 65 anos depois. À direita, o punhal e amor de
Lampião, Maria Bonita em 1936, filmados por Benjamin Abrahão.
A madrugada fria de 28 de julho
de 1938 passou à história como o fim do cangaço após 270 anos de reinado do
banditismo rural no sertão. Foi então, na Grota do Angico em Sergipe, que o
capitão Virgulino Ferreira da Silva, vulgo “Lampião, o rei do Cangaço”, tombou
aos 40 anos com a mulher Maria Bonita e um bando de nove homens, abatidos pelas
forças volantes de Alagoas, que invadiram o Estado vizinho na pressa de cumprir
a ordem de Getúlio Vargas de acabar com 20 anos das ações de Lampião e bando.
Houve pilhagem, violação de cadáver e exposição itinerante de cabeças em festas
populares. O cangaço moderno de Lampião − sustentado por dança alegre, punhal e
viola, trajes luxuosos e dominação territorial pelo terror e a violência
associada a marketing e organização − encerrava-se com a vitória da
civilização.
Triunfo ilusório, porém. As
cabeças de Lampião e Maria Bonita errariam pelos sertões, e só seriam
enterrados em 1969. O culto ao casal ganhou ares de epopeia. Produziram-se
milhares de textos, de poemas de cordel a romances, pesquisas acadêmicas e
biografias. O cangaço se tornou o campo de estudo mais vasto da cultura
sertaneja. O furor investigativo deu origem ao especulativo.
O mistério maior da área recaía
sobre a identidade do matador de Lampião. Dois soldados na época reivindicaram
a façanha, e um deles foi morto misteriosamente, mas nada foi provado. O algoz
real se manteve em silêncio, pois Lampião tinha relações com poderosos do
sertão, prontos a se vingar. Em 1970, um desses “coiteiros”, como eram chamados
os acobertadores de Lampião, o fazendeiro Audálio Tenório de Albuquerque,
contou ao compadre, o historiador Frederico Pernambucano de Mello, que o
executor chamava-se Sebastião Vieira Sandes, o Santo, também apelidado
Galeguinho. “Passei a perseguir a fonte”, diz Mello. Em 1978, localizou seu
paradeiro: bairro do Farol em Maceió, onde morava com a família. Tentou um
contato, mas foi rechaçado. No fim de 2003, Santo mandou um recado a Mello:
estava com um aneurisma incurável. “Quero destampar fatos que não desejo levar
para o túmulo”, afirmou. Combinaram de se encontrar em Pedra de Delmiro
Gouveia, Alagoas, onde se despedia dos parentes. Conversaram em 8 e 12 de
dezembro de 2003. O resultado está no livro “Apagando Lampião – Vida e Morte do
Rei do Cangaço” (editora Global), que vem a ser o 568º relato da vida de
Lampião.
Peso do remorso
O livro é repleto de descobertas
sobre o esquema de franquia de bandos que o cangaceiro lançou, baseado no
projeto do industrial Delmiro Gouveia de levar progresso ao sertão, com quem
Virgulino havia trabalhado. Também narra que fugia para o Sul quando foi morto,
porque pretendia se estabelecer como pecuarista em Patos de Minas, onde
enriquecia o ex-cangaceiro Sinhô Pereira, seu antigo chefe. Mas a revelação
mais potente e confirmada por perícia técnica está no relato do soldado Santo,
sobre como matou e decapitou Lampião e viu morrer Maria Bonita. Ele contou que
subiu ao cume da grota, de onde desferiu um único tiro, que atingiu o umbigo de
Lampião da altura de oito metros depois de resvalar no punhal do cangaceiro.
Ele tomava café diante de sua barraca quando desabou. As volantes atacaram em
peso, e os “cabras” tombaram. Santo encontrou Maria Bonita perto de Lampião,
atingida na omoplata. “Galeguinho, pelo amor de Deus, não deixe acabarem de me
matar”, suplicou ela. Quando Santo ia oferecer-lhe um cigarro, surgiu o autor
do primeiro tiro para dar cabo “da bandida”, decapitando-a, como rezava o
código de honra. Santo fez o mesmo com sua presa, não sem conter as lágrimas.
O atirador Santo e o historiador
Frederico Pernambucano de Mello,
em 2003.
em 2003.
Segundo Mello, Santo morreu em
janeiro de 2004, envolto em
culpa. Antes de se tornar coiteiro, foi parceiro de Lampião
no artesanato de couro, quando contava 18 anos em Água Branca, Alagoas. Ele
confeccionava peças de couro ao lado de Lampião, também ele exímio artesão e
bordador, para acolher os novos membros do bando. Galeguinho organizava os
bailes do amigo e costumava dançar com Maria Bonita. “A história de Santo é um
caldeirão shakespeariano”, afirma Mello. Tanto que a história vai virar filme.
(D a revista ISTOÉ,
janeiro de 2019)
Capa do livro sobre
Lampião
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