domingo, 27 de janeiro de 2019

O homem que matou Lampião


Em “Apagando Lampião − Vida e Morte do Rei do Cangaço”, Frederico Pernambucano de Mello revela a identidade de Santo, soldado que traiu e decapitou o capitão Virgulino em 1938.


À esquerda, o soldado Sebastião Vieira Sandes, o Santo, em 1938, entrevistado pelo repórter Melchiades Rocha, de A Noite: façanha revelada 65 anos depois. À direita, o punhal e amor de Lampião, Maria Bonita em 1936, filmados por Benjamin Abrahão.

A madrugada fria de 28 de julho de 1938 passou à história como o fim do cangaço após 270 anos de reinado do banditismo rural no sertão. Foi então, na Grota do Angico em Sergipe, que o capitão Virgulino Ferreira da Silva, vulgo “Lampião, o rei do Cangaço”, tombou aos 40 anos com a mulher Maria Bonita e um bando de nove homens, abatidos pelas forças volantes de Alagoas, que invadiram o Estado vizinho na pressa de cumprir a ordem de Getúlio Vargas de acabar com 20 anos das ações de Lampião e bando. Houve pilhagem, violação de cadáver e exposição itinerante de cabeças em festas populares. O cangaço moderno de Lampião − sustentado por dança alegre, punhal e viola, trajes luxuosos e dominação territorial pelo terror e a violência associada a marketing e organização − encerrava-se com a vitória da civilização.

Triunfo ilusório, porém. As cabeças de Lampião e Maria Bonita errariam pelos sertões, e só seriam enterrados em 1969. O culto ao casal ganhou ares de epopeia. Produziram-se milhares de textos, de poemas de cordel a romances, pesquisas acadêmicas e biografias. O cangaço se tornou o campo de estudo mais vasto da cultura sertaneja. O furor investigativo deu origem ao especulativo.

O mistério maior da área recaía sobre a identidade do matador de Lampião. Dois soldados na época reivindicaram a façanha, e um deles foi morto misteriosamente, mas nada foi provado. O algoz real se manteve em silêncio, pois Lampião tinha relações com poderosos do sertão, prontos a se vingar. Em 1970, um desses “coiteiros”, como eram chamados os acobertadores de Lampião, o fazendeiro Audálio Tenório de Albuquerque, contou ao compadre, o historiador Frederico Pernambucano de Mello, que o executor chamava-se Sebastião Vieira Sandes, o Santo, também apelidado Galeguinho. “Passei a perseguir a fonte”, diz Mello. Em 1978, localizou seu paradeiro: bairro do Farol em Maceió, onde morava com a família. Tentou um contato, mas foi rechaçado. No fim de 2003, Santo mandou um recado a Mello: estava com um aneurisma incurável. “Quero destampar fatos que não desejo levar para o túmulo”, afirmou. Combinaram de se encontrar em Pedra de Delmiro Gouveia, Alagoas, onde se despedia dos parentes. Conversaram em 8 e 12 de dezembro de 2003. O resultado está no livro “Apagando Lampião – Vida e Morte do Rei do Cangaço” (editora Global), que vem a ser o 568º relato da vida de Lampião.
  
Peso do remorso

O livro é repleto de descobertas sobre o esquema de franquia de bandos que o cangaceiro lançou, baseado no projeto do industrial Delmiro Gouveia de levar progresso ao sertão, com quem Virgulino havia trabalhado. Também narra que fugia para o Sul quando foi morto, porque pretendia se estabelecer como pecuarista em Patos de Minas, onde enriquecia o ex-cangaceiro Sinhô Pereira, seu antigo chefe. Mas a revelação mais potente e confirmada por perícia técnica está no relato do soldado Santo, sobre como matou e decapitou Lampião e viu morrer Maria Bonita. Ele contou que subiu ao cume da grota, de onde desferiu um único tiro, que atingiu o umbigo de Lampião da altura de oito metros depois de resvalar no punhal do cangaceiro. Ele tomava café diante de sua barraca quando desabou. As volantes atacaram em peso, e os “cabras” tombaram. Santo encontrou Maria Bonita perto de Lampião, atingida na omoplata. “Galeguinho, pelo amor de Deus, não deixe acabarem de me matar”, suplicou ela. Quando Santo ia oferecer-lhe um cigarro, surgiu o autor do primeiro tiro para dar cabo “da bandida”, decapitando-a, como rezava o código de honra. Santo fez o mesmo com sua presa, não sem conter as lágrimas.


O atirador Santo e o historiador Frederico Pernambucano de Mello,
em 2003.

Segundo Mello, Santo morreu em janeiro de 2004, envolto em culpa. Antes de se tornar coiteiro, foi parceiro de Lampião no artesanato de couro, quando contava 18 anos em Água Branca, Alagoas. Ele confeccionava peças de couro ao lado de Lampião, também ele exímio artesão e bordador, para acolher os novos membros do bando. Galeguinho organizava os bailes do amigo e costumava dançar com Maria Bonita. “A história de Santo é um caldeirão shakespeariano”, afirma Mello. Tanto que a história vai virar filme.

(D a revista ISTOÉ, janeiro de 2019)


Capa do livro sobre Lampião

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