sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

As parcerias musicais de Manuel Bandeira

Manuel bandeira foi o poeta mais musicado de sua geração

(excertos da reportagem)

Por Marcelo Bortoloti


Manuel bandeira

(...)

O primeiro parceiro de Manuel Bandeira foi o compositor Villa-Lobos. A dupla tem cerca de 15 composições em conjunto – a maioria não foi gravada ou só pode ser encontrada em discos hoje fora de circulação. Villa-Lobos musicou poemas de Bandeira como “O anjo da guarda” e “Debussy”, composição apresentada na Semana de 1922. A pedido do maestro, o poeta também escreveu letras para canções como “Modinha” e “Jurupari” – produção que Bandeira não considerava o melhor de sua lavra, como registrou nas memórias: “Lidas independentemente da música, não valem nada, tanto que nunca pude aproveitar nenhuma delas”. Também é de autoria do pernambucano a letra de um dos movimentos da “Bachiana no 5”. A peça foi composta por Villa-Lobos inicialmente em 1938 e completada em 1945. A primeira parte, que tem letra da cantora e desconhecida poeta Ruth Valadares Correa, obteve projeção internacional e é uma das composições mais famosas do maestro. A parte com letra de Bandeira não teve a mesma repercussão e é conhecida por poucos.

Bachiana nº 5
(Dança Martelo)

Manuel Bandeira e Villa-Lobos

Irerê, meu passarinho
Do sertão do cariri,
Irerê, meu companheiro,
Cadê viola?
Cadê meu bem?
Cadê Maria?
Ai triste sorte a do violeiro cantadô!
Sem a viola em que cantava o seu amô,
Seu assobio é tua flauta de irerê:
Que tua flauta do sertão quando assobia,
A gente sofre sem querê!

Teu canto chega lá do fundo do sertão
Como uma brisa amolecendo o coração.

Irerê, solta teu canto!
Canta mais! Canta mais!
Pra alembrá o cariri!

Canta, cambaxirra!
Canta, juriti!
Canta, irerê!
Canta, canta, sofrê!
Patativa! Bem-te-vi!
Maria-acorda-que-é-dia!
Cantem, todos vocês,
Passarinhos do sertão!

Bem-te-vi!
Eh sabiá!
Lá! Liá! liá! liá! liá! liá!
Eh sabiá da mata cantadô!
Lá! Liá! liá! liá!
Lá! Liá! liá! liá! liá! liá!
Eh sabiá da mata sofredô!

O vosso canto vem do fundo do sertão
Como uma brisa amolecendo o coração

(...)

Outro parceiro de Manuel Bandeira foi o compositor paulistano Francisco Mignone, músico também erudito. Ele musicou 14 poemas do pernambucano, inclusive depois de sua morte. Bandeira, além disso, escreveu letras para quatro composições melódicas de Mignone. Uma delas é uma peça sacra, com o título “Alegrias de Nossa Senhora”. Mignone teve a ideia da composição e durante anos pediu uma letra ao poeta. Na década de 1940, Bandeira encontrou o poema perfeito para a música, escrito por uma das freiras do Convento das Carmelitas, no Rio de Janeiro. Ele frequentava o lugar para ajudar as irmãs a esclarecer dúvidas de português. O poeta modificou os versos para adaptá-los à forma musical. O resultado foi uma letra a quatro mãos, que a freira não quis assinar, em respeito aos votos de humildade do convento. Bandeira ainda deu crédito à freira, ao contar a história numa crônica de jornal. Mas, com o passar dos anos, a autoria da letra foi atribuída somente ao pernambucano. A composição foi apresentada pela primeira vez num concerto no Rio, em 1949, e obteve boas críticas. Mas só voltou a ser executada em 1955 e nunca foi gravada.


Francisco Mignone

Hino do Quarto Centenário da Cidade do Rio de Janeiro

Manuel Bandeira e Francisco Mignone

Na beleza de tua luz clara,
Serás sempre − o futuro o dirá 
Coração do Brasil, Guanabara,
Ó cidade de Estácio de Sá!

Ao fundar-te o valor português
Junto à encosta do morro do Cão
Não pensou que haverias de ser
Deste imenso Brasil coração.

E porque, sobremodo crescente,
Capital te fizeram um dia.
Grandes honras de glória tiveste...
Incessante tua força crescia.

Quatro séculos faz já que existes.
Já deixaste de ser capital.

Tua glória no entanto persiste:
Fê-la o seu padroeiro imortal.

Na beleza de tua luz clara,
Serás sempre − o futuro o dirá 
Coração do Brasil, Guanabara,
Ó cidade de Estácio de Sá!

Bandeira e Mignone também criaram juntos um hino para o Rio de Janeiro. Foi em 1965, durante a comemoração do quarto centenário da cidade. Havia na época uma polêmica em torno do hino extraoficial do município, “Cidade Maravilhosa”, uma marcha carnavalesca da década de 1930 composta por André Filho. Deputados alegavam que a música não refletia o sentimento patriótico dos cariocas e a cidade merecia um hino com as características musicais do gênero. Carlos Lacerda, governador do estado da Guanabara, realizou um concurso público para a escolha do hino do quarto centenário, cujo resultado foi um fiasco. Amigo de Bandeira, ele encomendou ao poeta uma canção. Outras músicas comemorativas foram compostas por diferentes autores na mesma ocasião e lançadas comercialmente. Nenhuma delas prosperou como hino da cidade. O “Hino do quarto centenário do Rio de Janeiro”, de autoria de Bandeira e Mignone, foi lançado num disco compacto, que tinha essa faixa de um lado e, do outro, a marcha “Cidade Maravilhosa”. Essa, por sua vez, foi oficializada como hino da cidade por meio de uma lei de 2003. O hino de Manuel Bandeira permaneceu no ostracismo.

O poeta experimentou algum sucesso no campo musical em suas parcerias com o compositor paraense Jayme Ovalle. O músico transitava entre o popular e o erudito, e era um boêmio conhecido, influente no meio cultural carioca. Vinicius de Moraes costumava dizer que quando Ovalle entrava em algum ambiente a temperatura subia 2 graus, dado seu poder de sedução. Ele e Bandeira compuseram juntos apenas duas músicas: “Modinha” e “Azulão”. Esta última, de 1936, apesar dos versos simples, tornou-se a mais famosa composição do poeta pernambucano.


Jayme Ovalle

Azulão

Manuel Bandeira e Jayme Ovalle →

Vai azulão, azulão
Companheiro vai
Vai ver minha ingrata
Diz que sem ela
O sertão não é mais sertão

Ah! voa azulão
Vai cantar
Companheiro
Vai

Em 1955, fez parceria com o compositor Ary Barroso, autor de “Aquarela do Brasil”, que gozava de enorme cartaz. Por iniciativa do jornalista João Condé, promotor do encontro, eles compuseram juntos a canção “Portugal, meu avozinho”. O anúncio da parceria provocou mais de uma dezena de reportagens nos jornais. O samba seria gravado por Sílvio Caldas, um dos grandes nomes da música brasileira na ocasião, num arranjo que misturaria dez guitarras portuguesas a pandeiros e tamborins. Em uma das reportagens, Ary Barroso declarou: “Pretendemos lançá-lo depois do Carnaval, de modo tão ruidoso quanto a ‘onda’ de que foi alvo. Temos grandes esperanças financeiras a respeito do samba”. Na mesma reportagem, Barroso também disse que, se obtivessem o sucesso esperado, continuariam compondo juntos.


Ary Barroso, Manuel Bandeira e João Condé

Portugal, meu avozinho

Manuel bandeira e Ary Barroso

Como foi que temperaste,
Portugal, meu avozinho,
Esse gosto misturado
De saudade e de carinho?

Esse gosto misturado
De pele branca e trigueira,
Gosto de África e de Europa,
Que é o da gente brasileira.

Gosto de samba e de fado,
Portugal, meu avozinho,
Ai, Portugal, que ensinaste
Ao Brasil o teu carinho!

Tu de um lado e do outro lado
Nós... No meio o mar profundo...
Mas, por mais fundo que seja,
Somos os dois um só mundo.

Grande mundo de ternura
Feito de três continentes...
Ai, mundo de Portugal,
Gente mãe de tantas gentes!

Ai, Portugal de Camões,
Do bom trigo e do bom vinho,
Que nos deste, ai avozinho,
Esse gosto misturado,
Que é saudade e que é carinho.

 (Revista Época, novembro de 2017)

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