sexta-feira, 1 de março de 2019

A língua fatal do Emílio de Menezes*

*(1866-1918)


Caricatura de Emilio de Menezes por Storni,
em D. Quixote, 4/7/1917 

→ A obra de Emílio de Menezes, inclusive, foi definida também em um soneto escrito por seu amigo de boemia Bastos Tigre:

O florete sutil de um pérfido epigrama
Não há quem, como Emílio, ousadamente esgrima.
Ai de quem do seu verso a estultice deprima,
Vibrando-o a gargalhar, como um látego em chama!

Às vezes, ele sobe, e vai, Parnaso acima,
E dos “Poemas da Morte” alvo caudal derrama.
O impecável da Forma, a opulência da Rima,
Lhe dão de egrégio poeta a quebradeira e a fama.

Juvenal (sem Pacheco) e de bigodes grossos,
Ao vê-lo, a turba alvar de tartufos e soezes,
Jogando a banha farta, e sacudindo os ossos,

Exclama, a suspirar, benzendo-se três vezes:
− “Livrai-nos, santo Deus, dos inimigos nossos,
E da língua fatal do Emílio de Menezes!”

→ No conhecido episódio do veto de Machado de Assis a Emílio de Menezes, atribui-se a excessiva boêmia do poeta curitibano a causa da incomum intervenção machadiana. No entanto, Josué Montello nos conta que Machado não gostava dos constantes ataques de Emílio a Mário de Alencar como no soneto.

Mariposas

Para a cadeira vaga na Academia de Letras
 é certa a eleição de Mário de Alencar:

A “Panelinha” de literatura
Que ferve no fogão da Academia,
Vai frigir, em tenríssima fritura,
O “enfant prodige” da burocracia.

O êxito é todo da candidatura
De um nascituro poeta, e, − quem diria! −
Do Severiano e do Domingos fura
A chapa o Mário, neste grande dia!

Glória das glórias, o incipiente Mário
Entra, senta-se e grita: “Eu aqui fico.
Vou completar o meu curso primário!”

Mostra a “bagagem”. Que pecúlio rico!
─ Calças curtas, a lousa, o abecedário
E o primeiro exemplar do “Tico-Tico”!

O ataque

→ Saturnino Barbosa, após uma pequena rusga com o escritor em uma reunião da Sociedade Brasileira dos Homens de Letras, realizou um retrato de Emilio de Menezes:


Bojudo latagão de longas guias
No carão rubicundo e petulante,
Quando caminha, lembra um elefante
Que prelibasse uísque nas orgias.

Gosta das musas; fala a todo instante
Da vida alheia; é um poço de arrelias
De onde pululam finas ironias,
Quando cheio de um líquido espumante...

Eis o grande poeta celebrado
Que por descuido ao mundo foi lançado
Para terror dos homens e dos bichos.

Em guarda, engenhos maus! Alerta, oh gente!
Abram alas à sátira mordente,
Chuços, calinos, rótulas, esguichos...

A réplica de Emilio de Menezes

Pedagogo pernóstico e pedante
Com vastas pretensões a literato;
Barrigudinho, cético, insensato,
Portador de uma cara extravagante.

Eis o poetastro trêfego e barato
Que o chicote da crítica ululante
A zero reduziu no mesmo instante
Em que passou a residir no mato.

Hoje não vibra mais, é letra morta,
Nem sonetos, nem livros maltrapilhos:
Passa o tempo a pedir, de porta em porta.

Há de acabar assassinando os seus,
Como Saturno a devorar os filhos,
O matador sacrilégio de Deus.

→ O escritor B. Lopes (gravura abaixo) ambientava seus livros no mundo aristocrático e se vestia de modo espalhafatoso. Por essas características, logo recebeu as pinceladas de Emílio.


Empertigado, malandrim pachola,
De polainas, monóculo e bombachas,
Mandou pôr nas botinas meia sola,
E abandonou de vez Porto das Caixas.

Trás registradas na caraminhola
Marcas de pontapés e de bolachas.
Faz versos; nos lundus, ao som da viola,
É o Conde Monsaraz das classes baixas.

De Sinhá Flor na rabadilha, ansioso,
Com seu focinho no ar e ereto o rabo,
Tem estesias de cachorro gozo.

Come sardinha e dois vinténs de nabo;
Bufa num quebra-queixo pavoroso,
E arrota petisqueiras do nababo!

→ O escritor de Porto das Caixas ficou furioso com o soneto e tratou de maldizer Emílio no que se refere à sua obesidade

Esse que a forma lembra de uma pipa,
Das que vazam cachaça em vez de vinho,
Esse monstro de palha e de toucinho,
De pouco cérebro e de muita tripa...

→ Emílio, ao tomar contato com o verso de B. Lopes, escreveu outro soneto:

Como passas B. Lopes? −Eu? Maluco!
Julguei um dia possuir princesas...
− E arranjaste este tipo mameluco?
− Que anda me pondo cá lampas acesas.

− Mas eu te vejo sempre em tais proezas...
− “Era a mais bela flor de Pernambuco”
− E hoje? Perdeu acaso tais belezas?
É o mais feio canhão de Chacabuco.

Mas coragem! Que a rima se derive
Pelo reguinho do meu verso, à toa
Murmurando, ao passar, rimas em ive

Vejo-te magro, espinafrado... − É boa!
Pois tu não sabes que comigo vive
D. Adelaide de Mendonça Uchoa?

→ Devido às críticas que Oliveira Lima (pintura abaixo) deferiu contra a sua política. Polêmicas à parte, o soneto se tornou um dos mais conhecidos de Emílio de Menezes:


De carne mole e pele bambalhona,
Ante a própria figura se extasia
Como oliveira ele não dá azeitona;
Sendo lima, parece melancia.

Atravancando a porta que ambiciona,
Não deixa entrar, nem entra. É uma mania!
Dão-lhe, por isso, a alcunha brincalhona,
De “paravento” da diplomacia.

Não existe exemplar na atualidade,
De corpo tal e de ambição tamanha,
Nem para intriga igual habilidade!

Eis, em resumo, essa figura estranha:
Tem mil léguas quadradas de vaidade,
Por milímetro cúbico de banha

→ Aliás, para ser alvo das sátiras emilianas não precisava ser um desafeto do autor, apenas bastava não ser simpático. Dentre esses Deuses postos em ceroulas há o chefe de polícia Aurelino Leal.

Não és somente um diretor de estrada
Ó Sansão capilar. És estradeiro,
Como o diz, provocando a gargalhada,
O nosso Oscar, trocista e galhofeiro.

Realmente! Com tal cara, assim barbada
Que incita a raiva de qualquer barbeiro,
És bem o que se diz: Praça escovada,
Das de embrulhar um regimento inteiro.

Levas, no cargo, a vida a fazer fitas!
Como o carvão te traz mil dissabores.
De reduz-lo a pó, firme cogitas.

Se do pó do carvão na poeira fores,
Terás, nessas tuas barbas infinitas,
Matéria-prima para espanadores.

→ Na sátira a Cerqueira Leite, podemos visualizar o retrato da persona satirizada:

Homem sério, porém politiqueiro,
De inteligência mais ou menos clara,
É um edil, camarista ou camareiro,
De raro estofo e de feição bem rara.

Mais seco do que arenque de fumeiro,
Todo feito em lasquinhas de taquara,
Sacode em contorções o corpo inteiro
E tem puxos de filme pela cara.

Tem um nariz de cinco ou seis andares.
Se ele entulhasse num mister diverso,
De bicha, traques, fogos populares.

Faria uma fortuna, − é incontroverso, −
Pois, naquele nariz, turvem-se os ares!
Cabem todos os traques do universo.

→ No soneto escrito a um indivíduo identificado como L.G. vemos essa oscilação entre clareza e obscuridade na decodificação dos signos

L.G.

Este vale, em toucinho, a inteira Minas;
Derretê-lo, seria um desencargo
Para a atual crise das gorduras suínas.
(O Monteirinho a isso põe embargo.)

Arrota francos, marcos, esterlinas,
Mas uma alcunha o faz azedo e amargo:
“Senador Tonelada”. Usa botinas
Cinquenta e quatro, à sombra, bico largo.

Tem uma proverbial sobrecasaca,
Cujo pano daria, em cor cinzenta,
Para o Circo Spinelli uma barraca.

Da do Oliveira Lima ela é parenta
Pois só o forro das mangas dá, em alpaca,
Para o novo balão do Ferramenta.

→ Um dos recursos do qual Emílio mais fazia uso era o rebaixamento moral de seus satirizados. Como exemplo, podemos analisar esse verso em referência ao acadêmico Afrânio Peixoto:

A porta da nomeada a muque arromba,
Pula a janela da celebridade,
Como o Quincas Barbeiro ou o Chico Bomba,
No subúrbio, ou no centro da cidade.

Nada aplaca o furor que a alma lhe invade
Ao sentir que, alto, o nome não ribomba,
Mas abafa, com manha e habilidade,
O uivar da fera no arrulhar da pomba.

Pônei quer ser quando a trotar se atira.
Mas, por muito que, a andar, ele se esgote,
Todos sabem que é trêfego piquira.

Vence, entretanto, um puro sangue ao trote,
Se o alazonado bigodinho vira,
Na forma de um anzol pesca ao dote.

→ Na sátira dirigida ao governador do Amazonas, Pires Ferreira, um verso merece destaque:

É tão feio que, assim nonagenário,
À sua própria fealdade une as alheias.
O seu rosto é um mosaico extraordinário
De pedacinhos de mulheres feias.

→ Outro poema foi feito para o ministro Lauro Muller ressalta a altura e magreza do caricaturado:

De uma magreza de evitar chuvisco,
Tem a altura fatal de um para-raio,
Tão alto que, se o aspecto lhe rabisco,
Na vertigem da altura até desmaio.

→ Outro recurso empregado é o jogo com o nome dos satirizados. Para caricaturar um indivíduo chamado Fernando José Patrício, Emílio faz um trocadilho com o nome do seu alvo que caíra em um conto do vigário.

Que o delegado de olho vivo seja
Nesse inquérito ao qual já deu início
E se a verdade descobrir deseja
Note que o gajo é mestre no artifício.

Com tal nome não vai à minha igreja,
Pois de pátria não ter tem ele o vício;
Em qualquer parte que Patrício esteja
Ele de todos há de ser patrício.

O caso nada tem de extraordinário:
O vigarista, porque andasse pronto,
Viu no Patrício o desejado otário...

Mas repare a polícia neste ponto:
Se prender o contista do vigário,
                      Não deixe solta a vítima do conto!

→ Hemetério dos Santos, por exemplo, professor do Colégio Militar e major honorário do Exército, foi pintado como um tipo preto, orgulhoso e petulante.

Neto de Obá, do príncipe africano,
Não faz congadas, corta no maxixe.
Herbert Spencer de ébano e de guano,
É um Froebel de nanquim ou de azeviche.

Na instrução, onde fala, soberano,
Diz: − Que comigo a crítica se lixe!
Sou o mais completo pedagogo urbano,
Pestalozzi genial, pintado a piche!

Major, fez da cor preta a cor reúna.
Na vasta escala de ornitologia,
Se águia não é, também não é graúna.

Um amador de pássaros diria:
− Este Hemetério é um pássaro turuna,
                      É o virabosta da pedagogia.

→ Ao tomar contato com o soneto emiliano, o professor começou a maldizer Emílio de bar em bar, de café em café. Nosso poeta, que já fora alvo das críticas de Hemetério outras vezes, fez um novo soneto.

O preto não ensina só gramática.
É, pelo menos, o que o mundo diz.
Mete-se na dinâmica, na estática,
E em muitas coisas mais mete o nariz...

Dizem que, quando ensina matemática,
As lições de “mais b”, de “igual a x”,
Em vez de lousa, com saber e prática,
Sobre as costas da mão escreve o giz.

Uma aluna dizia: “Este Hemetério
Do ensino fez um verdadeiro angu,
Com que empanturra todo o magistério”.

E é um felizardo o príncipe zulu:
Quando manda um parente ao cemitério,
Usa um luto barato: −fica nu!

→ Na sátira ao Governador do Amazonas Antônio Bittencourt, ao criticá-lo, propõe-se implicitamente uma correção:

Esta é mesmo imprevista e inesperada!
O velho Bittencourt pifões cozinha!
E do Amazonas descem de enxurrada
Pororocas de cana e laranjinha!

Do Palácio mal desce agora a escada!
Física e moralmente ele definha
E o que a alma lhe macula é a “imaculada”;
O que o corpo lhe verga é essa caninha

                      Deu-lhe o alambique original mania
E uma loucura a bem dizer didática;
Fala até de prosódia e ortografia.

                      De pau d’água governa ele na prática,
Pois mal passa, a qualquer hora do dia,
                      Sem ser com “dois dedinhos de gramática”.

*****

Poemas retirados o trabalho acadêmico de Luciana da Costa Ferreira,
Rio de Janeiro 2014:
“Entre a Colombo e a Academia: 
o intelectual boêmio Emílio de Menezes”.


Emílio Nunes Correia de Menezes nasceu em Curitiba, Paraná. Jornalista e poeta, foi eleito para a Academia brasileira de Letras, mas faleceu antes de tomar posse. Escreveu sonetos e poemas satíricos tão mordazes que o comparavam a Gregório de Mattos. Considerado boêmio e excêntrico para os padrões da época.

Obras publicadas: Marcha fúnebre − sonetos – 1892; Poemas da morte −1901; Dies irae − A tragédia de Aquidabã – 1906; Poesias – 1909; Últimas rimas – 1917; Mortalha − Os deuses em ceroulas − reunião de artigos, org. Mendes Fradique – 1924; Obras reunidas – 1980.

Alto, gordo, ventrudo, com restos grisalhos de cabeleira romântica, cujas falripas lhe escorriam para a testa, a dupla papada a cobrir-lhe o colarinho baixo, em pontas, chapelão de abas largas, Emilio de Menezes, a cabeça baixa, cofiando os bigodes gauleses, os olhos semicerrados, improvisava epitáfios. Muitos não podem ser aqui reproduzidos por pertencerem ao gênero fescenino. São talvez os mais engraçados e, evidentemente, os mais perversos. Comecemos pelo auto-epitáfio, ligeiramente modificado, pro-pudor:

− Morreu em tal quebradeira,
que não pôde entrar no céu,
pois só levou: cabeleira,
banhas, bigode e o chapéu.

A vida boêmia trouxe problemas de saúde e, por ironia, Emílio morreu magro aos 52 anos, mas não perdeu a piada: “Estou apenas enganando os vermes, eles esperam mais de cem quilos de banha, e estou levando ossos duros de roer”.

No leito de morte, em seus momentos derradeiros, Emílio não sentia mais as pernas:

− Doutor, estou morrendo à prestação...

*****


Bastos Tigre, no dia seguinte ao da morte do querido e pranteado amigo, escreveu este soneto:

− Poeta amigo, alcançaste a estância derradeira.
Passaste. E todos nós, vendo-te em teu caixão,
indagamos: − E a Musa? e a Musa galhofeira?
E a satírica? E a séria? E a triste? Onde é que estão?

Nenhum apareceu à tua cabeceira.
− Mas não os condeneis, pulcro espírito, não!
Fujiram por te ver da negra cova à beira,
sem te poder valer, sem te dar salvação.

E morreste alma boa, alma pura, descansa
Neste − sabes-lo tu − misterioso lugar
em que o “ Nada” final sobre o “Tudo” se lança.

E eu me fico a sorrir tristemente, a pensar,
que é mais “uma do Emílio”... a animar a esperança
de que vives ainda e que estás a brincar... 

             Soneto 328 Gordo

Emílio de Menezes aproveita
a lenda de seu porte arredondado:
Com brilho, trocadilhos tem bolado,
e às vezes os limites não respeita.

De bonde viajando, certa feita,
sentou no mesmo banco, lado a lado
com outro tipo gordo avantajado,
mas tanto peso o assento não aceita.

“Primeira vez que vejo”, disse, “um banco
quebrando, não por falta, por excesso
de fundos!”, no seu tom jocundo e franco.

Sem dúvida, o segredo do sucesso
do gordo é não deixar passar em branco
a chance de gozar seu próprio sesso...

          Glauco Mattoso

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