segunda-feira, 18 de março de 2019

Eu sou o mundo

Por Nemê Kazan,
poeta libanês contemporâneo
(Tradução de Ghiaroni)


Vi a gota cair piedosa do ar,
cair pequenina sobre o chão sedento,
para depois ser rio turbulento,
Indo morrer nas convulsões do mar.
Mas ficou tão saudosa a terra viúva,
ardendo em sede, suspirando em mágoa,
que o mar lhe devolveu a gota dʼágua
feita de novo em lágrima de chuva.
Assim se impõe uma vontade ignota:
o rio rugidor nasce da gota,
para que nasça o mar de seus caudais,
e do mar nascem nuvens inconstantes
que caem de novo em gotas fecundantes
em efêmeras gotas imortais.

Eu vi a flor vaidosa e a brisa amena
bebendo o orvalho da manhã serena,
num idílio sem fim de brisa e flor.
Mas soprou o tufão depois da aragem
despetalando a rosa na passagem,
esmagando-a um sopro arrasador.
Porém a terra, a mãe que nunca enjeita,
colhe no seio a triste flor desfeita
e clama pelas águas da amplidão.
Assim renasce a flor, para que um dia
novamente a sacuda a ventania,
lançando as suas pétalas no chão.
Alegria que nasce de um pavor!
Visão de paz que nasce de uma guerra!
Quando ventou, a flor desfez-se em terra,
quando choveu, a terra fez-se em flor!

Vi homens juntos a um berço de criança!
Um murmurava, debulhando um terço,
outro sorria, cheio de esperança,
− eram crianças que não tinham berço.
Vi homens diante de uma catacumba,
estava cada qual mais triste e absorto;
choravam todos em redor de um morto,
e eram mortos que não tinham tumba.

Quantas vezes nasceram e morreram,
indo cegos do berço à sepultura!
Pois morreram assim como nasceram,
na mesma e eterna incompreensão obscura!
Do Mundo para o Além se dissolveram,
cegos a tudo o que aproxima os dois.
Portanto, não viveram nem morreram,
porque jamais seus olhos perceberam
o mistério do Antes e Depois!

Sou gota e caio; sou torrente e corro.
Sou berço e túmulo; em mim nasço e morro.
Das minhas trevas surge o meu clarão;
do meu hoje, o amanhã sereno e forte.
Ao nascer, ouço ecos de outra morte,
e ao morrer, ecos de outra geração.
Eu não conheço ausência nem degredo.
Se, um dia, eu tiver medo, será medo
de mim mesmo, do enigma que sou.
E, se eu fugir de um pavor terrível,
será de mim... Mas como? É impossível,
porque sou tudo e em toda parte estou!
Eu sou o Mundo! Quando vier meu fim,
como nasci, eu morrerei em mim!


Do livro “As mais Belas Páginas da Literatura Árabe”,
de Mansour Challita*

*Mansour Yousef Challita foi um escritor, tradutor e diplomata libanês. Nascido na Colômbia, Challita passou a infância e boa parte da sua juventude no Líbano, onde estudou filosofia e letras. Cursou direito na França, e jornalismo na América do Norte. Desde os anos 50, vivia no Brasil. É o principal tradutor da obra de Gibran Khalil Gibran. Traduziu também o Alcorão, Livro Sagrado do Islã (ISBN 9788577991686), cuja primeira edição ocorreu em 1970. Faleceu em 12/07/2013 na cidade do Rio de Janeiro, onde foi sepultado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário