sábado, 30 de março de 2019

Monólogos de Gota dʼágua



Gota d'água é o título da peça teatral (drama), de autoria dos escritores brasileiros Chico Buarque e Paulo Pontes, escrita em 1975 e publicada em livro homônimo, em 1975, pela editora Civilização Brasileira.

Pelo desfecho de uma fuga em carro celeste, Joana (Medeia) poderia parecer a tragédia grega de mais problemática adaptação à cena contemporânea.  Chico Buarque e Paulo Pontes não só encontram uma admirável equivalência na realidade atual do país, mas deram uma excelente contribuição à dramaturgia brasileira.

Entre outros valores da peça de Eurípedes, o que mais a aproxima de nós é o avassalador ressentimento amoroso da heroína. Medeia fere todas as leis familiares e comete crimes para acompanhar Jasão e, quando poderia desfrutar um convívio sereno, ele a abandona em troca do casamento vantajoso com a filha do rei Creonte. A fúria vingativa, a mágoa intratável de Medeia se fixam no gesto mais terrível e ao mesmo tempo mais grandioso da decepção sentimental: depois de sacrificar a princesa e Creonte, ela extirpa o amor que adoecera aniquilando os seus frutos, isto é, matando os próprios filhos. Uma crueldade espantosa, que é uma forma de autodestruição.

Veneno

(Monólogo da peça teatral Gota dʼágua, Medeia, por Bibi Ferreira*)

Tudo está na natureza encadeado em movimento: cuspe, veneno, tristeza, carne, moinho, lamento, ódio, dor, cebola, coentro, gordura, sangue, frieza, isso tudo está no centro de uma mesma estranha mesa.

Misture cada elemento: uma pitada de dor, uma colher de fermento e uma gota de terror.

O suco dos sentimentos, raiva, medo ou desamor, produz novos condimentos, lágrima, pus e suor, mas inverta o seguimento, intensifique a mistura. Tempero, ódio, lagrimento, sangalho com tristesura, carmento, velho moinho.  Remexa tudo por dentro, passe tudo no moinho, moa carne, sangue, coentro, chore, envenene a gordura: você terá unguento, uma papa grossa e escura, essência do meu tormento e molho de uma fritura de paladar violento, que engolindo, a criatura repara no meu sofrimento com a morte lenta e segura.

Eles pensam que a maré vai, mas nunca volta. Até agora eles estavam comandando meu destino e eu fui, fui, fui, recuando recolhendo fúrias. Hoje, eu sou onda solta e tão forte quanto eles me imaginam fraca. Quando eles virem invertida a correnteza quero ver se eles resistem a surpresa e quero saber como eles reagem a ressaca!

*****

*Atriz da primeira montagem de peça Gota dʼágua.

P.S. Esse monólogo está na internet na voz de Bibi Ferreira.

Joana fala a Jasão

(Monólogo de Joana para Jasão, na peça Gota dʼágua, por Laura Garin*)

Pois bem, você vai escutar as contas que eu vou lhe fazer: te conheci moleque, frouxo, perna bamba, barba rala, calça larga, bolso sem fundo. Não sabia nada de mulher nem de samba e tinha um puto dum medo de olhar pro mundo.

As marcas do homem, Jasão, uma a uma, tu tirou todas de mim. O primeiro prato, o primeiro aplauso, a primeira inspiração, a primeira gravata, o primeiro sapato de duas cores, lembra? O primeiro cigarro, a primeira bebedeira, o primeiro filho, o primeiro violão, o primeiro sarro, o primeiro estribilho, o primeiro refrão.

Te dei cada sinal do teu temperamento. Te dei matéria-prima para o teu tutano. E mesmo essa ambição que, neste momento, se volta contra mim, eu te dei, por engano. Fui eu, Jasão, você não se encontrou na rua não. Você andava tonto quando eu te encontrei. Fabriquei energia que não era tua pra iluminar uma estrada que eu te apontei.

E foi assim, enfim, que eu vi nascer do nada uma alma ansiosa, faminta, buliçosa, uma alma de homem. Enquanto eu, enciumada dessa explosão, ao mesmo tempo, eu, vaidosa, orgulhosa de ti, Jasão, era feliz, eu era feliz, Jasão, feliz e iludida, porque o que eu não imaginava, quando fiz dos meus anos a mais uma sobrevida pra completar a vida que você não tinha, é que estava desperdiçando o meu alento, estava vestindo um boneco de farinha. Assim que bateu o primeiro pé-de-vento, assim que despontou um segundo horizonte, lá se foi meu homem-orgulho, minha obra completa, lá se foi pro acervo de Creonte…

Certo, o que eu não tenho, Creonte tem de sobra: Prestígio, posição… Teu samba vai tocar em tudo quanto é programa. Tenho certeza que Gota d’Água não vai parar de pingar de boca em boca… Em troca pela gentileza vais engolir a filha, aquela mosca morta, como engoliu os meus dez anos. Dez anos... Esse é o teu preço, dez anos. Até que apareça uma outra porta que te leve direto pro inferno. Conheço a vida, rapaz. Só de ambição, sem amor, tua alma vai ficar torta, desgrenhada, aleijada, pestilenta… Aproveitador! Aproveitador!…

*****

*Atriz da segunda montagem da peça Gota dʼÁgua.

P.S. Esse monólogo está na internet na voz a atriz Laura Garin.

Um comentário: