A Silhueta
João Saldanha*
(...)
Um dia, a esquina inteira se
mobilizou. Foi quando um edifício ali perto foi apelidado de “Edifício
Silhueta”. Já era mais de meia-noite quando chegou na roda um garoto, com os
olhos maiores do que um pires e disse, gaguejando: “Ali naquele edifício tem um
casal... eu acho. Estão lá dentro, mas se vê tudo da rua.” Era sábado e a roda
estava imensa. Até dividida em duas ou três rodinhas de papo. Um fundador do
Botafogo, um dirigente atuante do Fluminense, ex-jogadores do Flamengo, do
Botafogo, e do Vasco, médicos, advogados, dentistas - dentistas então sempre
estavam uns três ou quatro - estudantes de várias escolas, comerciários e
comerciantes, todo mundo. Casa cheia. Todos correram na direção que o tal
garoto indicara. A Avenida Copacabana encheu. Veio o ônibus e teve de parar.
Passar como? O chofer ia entrar na bronca, mas um dos organizadores da pequena
multidão, que já estava se acotovelando, com gestos bem significativos, fez ver
ao chofer do ônibus o que se passava. O chofer entendeu logo e ficou na paquera
do lance. Algum passageiro estrilou, mas ele, sem tirar os olhos do lance,
mostrou o que se passava. E o casal mandando brasa. A porta estava fechada. Mas
a luz do saguão ou hall de entrada estava acesa. Bem acesa e forte. A porta era
vidro fosco. Ora, a luz por trás do casal transmitia para a turma da rua a mais
perfeita silhueta que se poderia desejar. E foi juntando gente. Um gaiato quis
fazer onda, mas um tremendo e severo “psssssiu” lhe tapou a boca. Parecia uma
tropa de comandos ou de assalto pretendendo pegar o inimigo desprevenido. Com o
ônibus parado e mal parado, os carros iam parando e as indicações sempre
diretas apontando para o evento e pedindo silêncio. Todos compreendiam logo e
até casais que iam passando paravam para olhar a cena inédita. De repente, o
casal lá de dentro parou rapidamente. A mulher, que estava sempre abaixada,
meio de quatro, se arrumou depressa. A rua ficou no mais profundo silêncio. Um
segurando o outro para ninguém invadir o lugar privilegiado de alguém que
chegara primeiro. Mas não era nada de mais. O elevador fora acionado, o casal
atuante teve de parar e de dentro do prédio saiu um cidadão. Uma vaia chegou a
ser ensaiada, mas o “sinal” de silêncio foi mais forte. O cara saiu, ficou meio
atônito de ver a rua tão cheia. E, ante os gestos e vozes surdas de “cai
fora... cai fora...”, olhou para trás e entendeu tudo. Procurou se ajeitar ali
pela frente, mais foi energicamente barrado. Arrumou um lugar mais atrás e toda
aquela pressa da saída do edifício desapareceu. O casal lá dentro engrenou de
novo. Do começo. Fizeram tudo e de repente terminou. Um “oh... oh!” se fez
ouvir. O cara do casal se arrumou, ela também. Ele deu um beijinho e veio para
a rua. Mal a porta se abriu, uma tremenda ovação. Bateram palmas e saudaram o
cidadão. Ele, meio aturdido, tomou a rua e se mandou, sumindo na primeira
esquina da Rua Miguel Lemos em direção à Rua Barata Ribeiro. Desapareceu na
noite e o papo bem entusiasmado voltou para a esquina. O ônibus foi embora e os
carros puderam passar.
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João Saldanha era gaúcho e nasceu em
1917 na cidade de Alegrete. Jornalista combativo, treinador, apaixonado pelo
futebol, conseguiu unir o Brasil − então politicamente dividido − em 1969, por
ocasião das eliminatórias para aquela que seria a Copa do tricampeonato no
México. De temperamento difícil, extremamente corajoso, fez muitos inimigos na
vida. Mas todos admiravam aquele homem (ainda que muitas vezes não o perdoando
pelas aventuras que dizia - e acreditava - ter vivido) que assistiu
a todas as Copas do Mundo de futebol; que, como jornalista, cobriu a guerra da
Coreia; que desembarcou na Normandia com Montgomery e que fez a grande marcha
com Mao Tse-Tung. Faleceu no dia 12 de julho de 1990, durante a Copa do Mundo. O
texto acima, parte do total, foi extraído do livro “Futebol e Outras Histórias”, edição especial
para a agência de publicidade MPM, São Paulo, 1988, pág. 139.
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