segunda-feira, 4 de março de 2019

Violência X Palavras

Dr. Acylino


Na zona sul de Porto Alegre, o Dr. Acylino Reguera de Azevedo foi médico bem popular, lá trabalhando por muitos anos. Radicou-se desde o início de sua vida profissional naquele setor da cidade, fazendo uma medicina geral de bom padrão, com larga e fiel clientela. Formado nos anos 30, cursou a Faculdade de Medicina nos ferozes tempos da ditadura Vargas, conhecida como Estado Novo.

Tradicionalmente, a Faculdade de Medicina de Porto Alegre era conhecida pela fervilhante atuação política, com seus alunos liderando e participando das lutas progressistas da época. Como sói acontecer, tais manifestações estudantis eram, em geral, tratadas pelas autoridades (e ainda mais nas épocas de ditadura) com boa dose de repressão, não raro chegando às “carícias” fornecidas pelos cassetetes da Brigada Militar.

Pois foi nesses anos, e nesse clima, que o Dr. Acylino fez sua formação, tendo boa dose de participação política.

Nessa época, ficou famosa uma grande passeata liderada pelos estudantes da Faculdade de Medicina que se seguiu seu rumo pela Rua da Praia, terminando por encontrar-se com um enorme contingente da Brigada Militar no Largo dos Medeiros. Após tratativas malsucedidas com os estudantes, os policiais militares acabaram por “baixar o pau” por ordem de um tenente, que vamos tratar aqui pelo nome de Andrade, comandante daquela tropa. Pois o Dr. Acylino estava presente na manifestação e foi, também, agraciado com as referidas “carícias”.

Muitos anos mais tarde, Dr. Acylino foi chamado a uma residência na zona sul de Porto Alegre para atender um certo coronel que estava passando mal, com forte dor no peito. Lá chegando, deparou-se com o Coronel Andrade, que logo viu tratar-se da pessoa que comandara aquela tropa da Brigada Militar muitos anos antes. O quadro clínico era inequívoco. Dor retroesternal forte, com sensação de morte iminente, que se iniciara após um esforço físico do coronel e se irradiava para o punho esquerdo, seguindo-se intensa falta de ar. O homem estava com as mucosas arroxeadas, sentado na cama apoiando-se nos braços, com os ombros elevados e gemendo de dor. O diagnóstico inicial foi de infarto agudo do miocárdio com edema pulmonar. Incontinente, o Dr. Acylino tirou, de sua maleta de urgência, morfina, aminofilina, digital, garroteou os membros e pediu rapidamente que chamasse uma ambulância do SAMDU*. Com toda a urgência, levou o coronel ao hospital (na época poucos hospitais tinham UTI) e acompanhou-o até que ficasse fora de perigo.

Alguns dias após, estando o quadro já estabilizado, ao dar alta do hospital, o Dr. Acylino teve uma conversa com o paciente:

− Coronel, agora o perigo já passou, o senhor está bem... Não abandone seus medicamentos sem ordem médica e faça suas revisões clínicas periodicamente; não negligencie sua saúde. Por último, o senhor lembra uma passeata nos anos 30, em que a Brigada bateu pra valer nos estudantes de Medicina? Eu lembro do senhor comandando aquela tropa. Eu estava lá, coronel, e apanhei bastante. Por isso, a partir de agora, procure outro médico. Eu não o atendo mais...

(Do livro “Clínica do Bom Humor”, do Dr. Marcos Rovinski)

*SAMDU: Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência, o SAMU da época.

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