É muita despedida
dolorosa
A Fausto Wolff
Nossa morte é feita de
frases feitas.
É absolutamente impossível ser
original quando, sem outra alternativa, usamos as palavras para nos despedirmos
de nossos mortos. Mesmo porque, na despedida, não estamos compondo para eles um
réquiem ou fazendo o soneto de despedida; estamos, apenas, querendo
expressar-nos para explicar a intensidade da pena que a perda nos causa.
Toda morte precisa, porém, de uma
despedida formal. Daí, a invenção do velório, ou mais expressivamente, de
festivais fúnebres como os da Tailândia, dos longos festejos reverenciais dos
mexicanos, da cerimoniosidade a que assistimos nos filmes em que americanos
enterram seus iguais.
No Brasil – ainda que não sejamos nem
mais nem menos sentimentais do que qualquer outro povo do mundo – já estamos,
todavia, dispensando o costume simples de passar a noite com nosso morto
querido para evitar as violências que podem ocorrer aos que, já violentados
pela perda, se aventuram a atravessar a madrugada no cemitério.
Até agora estou dando voltas para
aceitar e falar da certeza da não-inexistência do Fausto na minha vida. Foram
50 anos de presença insistente. Ele partiu no expresso que levou, na mesma
semana, mais dois amigos antigos e fraternos, o Fernando Barbosa Lima e o
Fernando Torres. É muita despedida dolorosa; é muita coisa boa para recordar!
De repente, coisas assim nos
acontecem. Quando morreu Drummond – foi neste mesmo período do ano – na quarta
ou quinta vez que estacionei meu carro em frente ao São João Batista, para mais
um sepultamento, o guardador me falou: “Seu pessoal tá indo embora, hein,
doutor!”
Meu Deus, quando você chega à
provecta idade a que cheguei, é um susto imaginar o tamanho da lotação do
Expresso 2222.
Adeus, Fausto. Como no livro que fiz
para despedir-me de sua grande amiga Vilma, minha mulher – a líder das que
tinham, como a Márcia hoje, a maior paciência com meus tormentos – eu tenho
duas razões para não chorar.
Se, como você acabava admitindo,
houver vida depois da morte, logo a gente se encontra e acerta nossas
constantes e proverbiais desavenças. Teremos bastante tempo para optar pela
bonança, que era tão boa quando vivíamos nela.
Se, por outro lado, a morte é o fim
absoluto – como, às vezes, você achava – que bom: você descansa, finalmente,
seu corpão cansado e tão automaltratado e seu espírito cheio das perplexidades
mais fascinantes.
Queria que a formalidade das
despedidas fúnebres contasse com a presença – ao vivo – do morto para a gente
poder fazer as pazes, que era, no fundo, o estado em que vivíamos, e acertar a
recepção de nossa chegada – sempre ao Céu – como nas charges que o Chico Caruso
faz.
A gente se vê lá, para o abraço
fraterno e final, ainda que seja na charge do Chico.
Ziraldo,
no JB, em 14 de setembro de 2008.
Fausto Wolff é desses raríssimos
brasileiros que merece o epitáfio:
“Trabalhou até morrer.”
Aldir Blanc
“O único de quem eu posso dizer: Não
morreu. Gastou sua vida.”
Millôr Fernandes
A última crônica de
Fausto Wolff:
“À sombra do medo em
flor”
Deem a chefia da portaria ao mais
dócil empregado e logo ele se tornará um tirano.
Já escrevi em algum lugar que,
enquanto não nos revoltarmos contra o conceito de democracia que considera
sagrado o direito de uma minoria escravizar o resto, jamais chegaremos à condição
de seres humanos. Seremos sempre caricaturas, títeres perdidos na ventania,
sempre com cara de “desculpe, não era bem isso que eu queria dizer”.
Enquanto não se der a revolução da
humanidade contra a tirania, enquanto deixarmos que nos humilhem para que
possamos continuar vivendo, teremos de suportar algumas imperfeições, certos
espinhos colocados em nossos sapatos ainda na infância que não podemos ou não
queremos tirar.
Uma dessas imperfeições é a
constatação de que, à medida que envelhecemos, vamos nos tornando mais
medrosos. Quando deveria acontecer o contrário: à medida que envelhece, o homem
deveria tornar-se mais corajoso, porque mais sábio, mais justo, mais conhecedor
dos seus deveres e direitos.
Quando eu tinha pouco mais de 20
anos, todos os dentes e era um sujeito bonito, era também dado a papagaiadas.
Certa vez, ainda noivo (havia noivados e até virgens naquela época), estava no
falecido Bar Castelinho, tomando um chope com minha futura mulher, quando um dos
donos de uma revista para a qual eu escrevia sentou-se à nossa mesa e se
comportou de forma grosseira.
Gentilmente, mandei que se retirasse,
pois já tinha de aturá-lo o dia inteiro e não pretendia fazer isso quando
estava namorando. Fui despedido no dia seguinte. Na hora, a sensação foi boa,
mas eu era muito jovem para perceber que os rateios estavam contra mim.
Outra imperfeição: ser burro, viver e
conhecer o mínimo do seu potencial energético interior e, além disso, ter de
suportar a consciência da sua mortalidade. Algumas pessoas percebem isso, mas,
como são ignorantes, aceitam o princípio nada otimista de que a vida é um
absurdo porque acaba na morte e, como dizia Camus, o homem vive e não é feliz.
Essa constatação é tão angustiante que, sem uma garrafa ao alcance da mão, é
difícil resistir à tentação de não dar um tiro na têmpora.
Hoje em dia, em pleno século 21, a grande maioria de
escravos aceita essa condição fingindo não saber dela, fingindo que a vida é
assim mesmo. Uns entram com o pé e os outros com o popô, uns com o pescoço e os
outros com a foice. Excetuando os psicopatas que, aparentemente, já nascem
tortos, alguns poucos escravos se rebelam e saem fazendo bobagens: roubando,
assaltando, matando, estuprando.
Quando isso acontece, todos ficam com
cara de tacho, fingindo que não têm nada a ver com o peixe. Em seguida, os
políticos pedem “responsabilidade criminal aos 16 anos”. Logo, pedirão
responsabilidade aos 15, 14 e cosi via. Cosi via significa que aumentará o
número de crianças assassinadas ao nascer; aceitação literal da loucura
religiosa de que o homem já nasce pecador. Claro que essa lei só valerá para
crianças pobres.
Sou contra a pena de morte, mas, como
a tragédia, mesmo quando coletiva, é sempre individual, o que eu faria se
matassem alguém indispensável à minha vida? E se alguém tirasse a vida de uma
pessoa e, ao fazer isso, me deixasse aleijado interiormente pelos anos que me
restam?
Como não acredito na Justiça e também
não acredito que podemos julgar oficialmente os efeitos sem punir as causas, eu
simplesmente mataria o assassino. E o faria pessoalmente, com as minhas mãos.
Em seguida, cidadão exemplar que sou,
me entregaria ao juiz. Não teria resolvido nada, mas como sou humano em estágio
ainda bárbaro, pelo menos isso atenuaria um pouco a minha dor.
Como vejo a coisa hoje? Deem a chefia
da portaria de um edifício ao mais dócil dos empregados e logo ele se tornará
um tirano para agradar ao poder imediatamente acima dele.
O poder ama a si mesmo e aos
poderosos. É tão implacável na sua injustiça que consegue convencer mais de 100
milhões de brasileiros adultos de que devem escolher entre o algoz da esquerda
e o da direita. E nada acontece.
05/09/2008
Fausto
Wolff, pseudônimo de Faustin von Wolffenbüttel (Santo Ângelo,
RS, 8 de julho
de 1940
− Rio de Janeiro, 5 de setembro
de 2008)
foi um jornalista
e escritor
brasileiro.
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