quinta-feira, 16 de maio de 2019

Fausto Wolff, “o último Quixote”



É muita despedida dolorosa

A Fausto Wolff

Nossa morte é feita de frases feitas.
  
É absolutamente impossível ser original quando, sem outra alternativa, usamos as palavras para nos despedirmos de nossos mortos. Mesmo porque, na despedida, não estamos compondo para eles um réquiem ou fazendo o soneto de despedida; estamos, apenas, querendo expressar-nos para explicar a intensidade da pena que a perda nos causa.

Toda morte precisa, porém, de uma despedida formal. Daí, a invenção do velório, ou mais expressivamente, de festivais fúnebres como os da Tailândia, dos longos festejos reverenciais dos mexicanos, da cerimoniosidade a que assistimos nos filmes em que americanos enterram seus iguais.

No Brasil – ainda que não sejamos nem mais nem menos sentimentais do que qualquer outro povo do mundo – já estamos, todavia, dispensando o costume simples de passar a noite com nosso morto querido para evitar as violências que podem ocorrer aos que, já violentados pela perda, se aventuram a atravessar a madrugada no cemitério.

Até agora estou dando voltas para aceitar e falar da certeza da não-inexistência do Fausto na minha vida. Foram 50 anos de presença insistente. Ele partiu no expresso que levou, na mesma semana, mais dois amigos antigos e fraternos, o Fernando Barbosa Lima e o Fernando Torres. É muita despedida dolorosa; é muita coisa boa para recordar!

De repente, coisas assim nos acontecem. Quando morreu Drummond – foi neste mesmo período do ano – na quarta ou quinta vez que estacionei meu carro em frente ao São João Batista, para mais um sepultamento, o guardador me falou: “Seu pessoal tá indo embora, hein, doutor!”

Meu Deus, quando você chega à provecta idade a que cheguei, é um susto imaginar o tamanho da lotação do Expresso 2222.

Adeus, Fausto. Como no livro que fiz para despedir-me de sua grande amiga Vilma, minha mulher – a líder das que tinham, como a Márcia hoje, a maior paciência com meus tormentos – eu tenho duas razões para não chorar.

Se, como você acabava admitindo, houver vida depois da morte, logo a gente se encontra e acerta nossas constantes e proverbiais desavenças. Teremos bastante tempo para optar pela bonança, que era tão boa quando vivíamos nela.

Se, por outro lado, a morte é o fim absoluto – como, às vezes, você achava – que bom: você descansa, finalmente, seu corpão cansado e tão automaltratado e seu espírito cheio das perplexidades mais fascinantes.

Queria que a formalidade das despedidas fúnebres contasse com a presença – ao vivo – do morto para a gente poder fazer as pazes, que era, no fundo, o estado em que vivíamos, e acertar a recepção de nossa chegada – sempre ao Céu – como nas charges que o Chico Caruso faz.

A gente se vê lá, para o abraço fraterno e final, ainda que seja na charge do Chico.

Ziraldo, no JB, em 14 de setembro de 2008.

Fausto Wolff é desses raríssimos brasileiros que merece o epitáfio:
“Trabalhou até morrer.”

Aldir Blanc

“O único de quem eu posso dizer: Não morreu. Gastou sua vida.”

Millôr Fernandes

A última crônica de Fausto Wolff:

“À sombra do medo em flor”

Deem a chefia da portaria ao mais dócil empregado e logo ele se tornará um tirano.

Já escrevi em algum lugar que, enquanto não nos revoltarmos contra o conceito de democracia que considera sagrado o direito de uma minoria escravizar o resto, jamais chegaremos à condição de seres humanos. Seremos sempre caricaturas, títeres perdidos na ventania, sempre com cara de “desculpe, não era bem isso que eu queria dizer”.

Enquanto não se der a revolução da humanidade contra a tirania, enquanto deixarmos que nos humilhem para que possamos continuar vivendo, teremos de suportar algumas imperfeições, certos espinhos colocados em nossos sapatos ainda na infância que não podemos ou não queremos tirar.

Uma dessas imperfeições é a constatação de que, à medida que envelhecemos, vamos nos tornando mais medrosos. Quando deveria acontecer o contrário: à medida que envelhece, o homem deveria tornar-se mais corajoso, porque mais sábio, mais justo, mais conhecedor dos seus deveres e direitos.

Quando eu tinha pouco mais de 20 anos, todos os dentes e era um sujeito bonito, era também dado a papagaiadas. Certa vez, ainda noivo (havia noivados e até virgens naquela época), estava no falecido Bar Castelinho, tomando um chope com minha futura mulher, quando um dos donos de uma revista para a qual eu escrevia sentou-se à nossa mesa e se comportou de forma grosseira.

Gentilmente, mandei que se retirasse, pois já tinha de aturá-lo o dia inteiro e não pretendia fazer isso quando estava namorando. Fui despedido no dia seguinte. Na hora, a sensação foi boa, mas eu era muito jovem para perceber que os rateios estavam contra mim.

Outra imperfeição: ser burro, viver e conhecer o mínimo do seu potencial energético interior e, além disso, ter de suportar a consciência da sua mortalidade. Algumas pessoas percebem isso, mas, como são ignorantes, aceitam o princípio nada otimista de que a vida é um absurdo porque acaba na morte e, como dizia Camus, o homem vive e não é feliz. Essa constatação é tão angustiante que, sem uma garrafa ao alcance da mão, é difícil resistir à tentação de não dar um tiro na têmpora.

Hoje em dia, em pleno século 21, a grande maioria de escravos aceita essa condição fingindo não saber dela, fingindo que a vida é assim mesmo. Uns entram com o pé e os outros com o popô, uns com o pescoço e os outros com a foice. Excetuando os psicopatas que, aparentemente, já nascem tortos, alguns poucos escravos se rebelam e saem fazendo bobagens: roubando, assaltando, matando, estuprando.

Quando isso acontece, todos ficam com cara de tacho, fingindo que não têm nada a ver com o peixe. Em seguida, os políticos pedem “responsabilidade criminal aos 16 anos”. Logo, pedirão responsabilidade aos 15, 14 e cosi via. Cosi via significa que aumentará o número de crianças assassinadas ao nascer; aceitação literal da loucura religiosa de que o homem já nasce pecador. Claro que essa lei só valerá para crianças pobres.

Sou contra a pena de morte, mas, como a tragédia, mesmo quando coletiva, é sempre individual, o que eu faria se matassem alguém indispensável à minha vida? E se alguém tirasse a vida de uma pessoa e, ao fazer isso, me deixasse aleijado interiormente pelos anos que me restam?

Como não acredito na Justiça e também não acredito que podemos julgar oficialmente os efeitos sem punir as causas, eu simplesmente mataria o assassino. E o faria pessoalmente, com as minhas mãos.

Em seguida, cidadão exemplar que sou, me entregaria ao juiz. Não teria resolvido nada, mas como sou humano em estágio ainda bárbaro, pelo menos isso atenuaria um pouco a minha dor.

Como vejo a coisa hoje? Deem a chefia da portaria de um edifício ao mais dócil dos empregados e logo ele se tornará um tirano para agradar ao poder imediatamente acima dele.

O poder ama a si mesmo e aos poderosos. É tão implacável na sua injustiça que consegue convencer mais de 100 milhões de brasileiros adultos de que devem escolher entre o algoz da esquerda e o da direita. E nada acontece.

05/09/2008

Fausto Wolff, pseudônimo de Faustin von Wolffenbüttel (Santo Ângelo, RS, 8 de julho de 1940Rio de Janeiro, 5 de setembro de 2008) foi um jornalista e escritor brasileiro.

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