terça-feira, 18 de junho de 2019

Histórias da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira



A Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira foi fundada a 28 de abril de 1928 no Buraco Quente, mais precisamente na Travessa Saião Lobato, 21. A reunião para sua criação aconteceu na casa de Euclides da Joana Velha, pai do João Cocada. São sete os fundadores oficiais: Euclides Roberto dos Santos, Saturnino Gonçalves, Marcelino José Claudino (Maçu), Angenor de Oliveira (Cartola), José Gomes da Costa (Zé Espinguela), Pedro Caim (Pedro Paquetá) e Abelardo da Bolinha.

Mesmo não constando em ata, o compositor Carlos Moreira de Castro, o Carlos Cachaça, nascido e criado em mangueira, é também considerado um dos fundadores da escola. Ele não estava na reunião porque preferiu namorar, como repetia sempre o mestre Cartola − mais para mexer com o velho amigo − revelando que naquela época “O Carlos estava lá por Inhaúma de asa arrastando pela Maria Aída, e nem parava no morro.”

Naquele tempo... 


Cartola, nos seus tempos de rapaz, foi um grande conquistador: as mulheres da Mangueira que se cuidassem. Aquele mulato magro, cheio de ginga e muita conversa, era um perigo. Certa vez, arranjou uma namorada que também namorava um dos valentes do morro. Nada menos que o nosso tão falado Maçu. Maçu era forte, andava armado e não recusava parada. Cartola era franzino, mas não podia dispensar aquela mulata linda, que lhe andava arrastando a asa. Tinha que fazer uma visita ao barraco da moça.
Pensou muito e decidiu. Foi conversar com o próprio Maçu:
− Maçu, é o seguinte. Arranjei uma namorada aí, mas ela tem um caso com um valente do morro. Me empresta o seu revólver, assim se houver algum problema, tô garantido.
Maçu sabia que o amigo não era dessas coisas, mas como também era muito mulherengo, entendeu o caso do menino, emprestou-lhe a arma, não sem antes recomendar:
− Vê lá o que você vai fazer, garoto, isso não é brincadeira. Toma cuidado.
Mas o cuidado já estava tomado. Sem revólver, Maçu ameaçava muito menos. Com o revólver do traído no bolso, Cartola foi, tranquilo, encontrar a mulata. Pelo menos, tiro de Maçu ele não levaria.
Muitos anos mais tarde, Cartola contou o caso a Maçu. Os dois riram muito.
A velha amizade era muito mais forte que uma traição da mulata.


Na foto acima, de 1934, Marcelino Claudino, o Maçu, à direita, de terno branco, um dos fundadores com a bandeira da escola, onde ainda podemos ver as letras B e C (bloco carnavalesco). Na verdade a Mangueira nasceu de uma conclamação do bloco dos Arengueiros a outros blocos do morro que se juntaram para a formação da escola em 28 de abril de 1928.

*****

Um dos típicos malandros da Mangueira foi o Dalmo (...). Era um negro alto e esguio, elegantíssimo, um dos principais componentes da Ala dos Boêmios. Ele era extremamente bem educado, de fala mansa, jamais levantava a voz. Dalmo era cafetão, mas nunca foi violento.
Um dia, ele vinha com uma, e outra de suas mulheres se aproximou, furiosa, com uma crise de ciúmes. Dalmo usava um terno bege, muito elegante e bem cortado, como sempre. Tinha extremo cuidado com a roupa, vestia-se com surpreendente bom gosto. Pois bem, as duas começaram a se estapear, puxa-pra-cá, puxa-pra-lá, com o Dalmo no meio, tentando se ver livre daquela situação desagradável.
Até que, num puxão mais violento, um a delas agarrou-se ao paletó do homem e o rasgou. Dalmo imediatamente interrompeu a briga e disparou, sem levantar a voz, como sempre;
− Se vocês querem brigar, que se embolem aí. Mas vou avisando logo; quem ganhar vai  pagar um terno novo.
E afastou-se calmamente, paletó rasgado no ombro, foi tomar sua cervejinha longe dali, alisando a camisa um pouco amarrotada e deixando as duas aos tapas e puxões de cabelos. Saíram com os vestidos em pedaços, rostos e braços arranhados, perucas despenteadas. No fim, as duas decidiram dividir as despesas e cada uma ficou com seu prejuízo. Dalmo, de terno novo, continuou com as duas.

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Neide, porta-bandeira da Mangueira.

Hermes Rodrigues, então presidente, disse que ele mesmo se encarregaria de mandar fazer a bandeira.
Só que o Hermes, para fazer uma média com a mulher e garantir um faturamento extra pra família, encarregou a patroa de bordar e confeccionar a bandeira. Afinal, ela era uma costureira e bordadeira de confiança.
No dia do desfile, a bandeira não chegava. Neide, já nervosa, empunhava a bandeira do ano anterior, preocupada. Aproximava-se a hora de entrar na passarela. A Estação Primeira avançava lentamente − mais lentamente que o normal, pela falta do imprescindível pavilhão − e nada. Nem Hermes, nem bandeira.
Chegou a hora e, nada. Lá foi Neide com a bandeira velha.
Só mais tarde se soube o motivo. A mulher descobrira que o pequenino Hermes Rodrigues estava namorando demais da conta. Com seu prestígio, Hermes andava impossível, quase toda noite com uma namorada nova.
A mulher nem conversou. Como já havia recebido o pagamento, vingou-se: sequestrou a bandeira e não houve o que a fizesse voltar atrás. As aventuras do Hermes deixaram a Estação Primeira sem bandeira e a Neide muito chateada, toda bonita, em sua fantasia maravilhosa, mas sem a razão de ser do seu desfile. Afinal, porta-bandeira sem bandeira é como político sem mandato.

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Prego, que hoje dá seu nome ao palanque da bateria no Palácio do Samba, era um dos melhores tocadores de chocalho da escola, era um espetáculo. Ele estava na Ala dos compositores, mas atendeu a convocação de Tinguinha e voltou à bateria, na fundação da Ala.


Ritmista com chocalho

Mas Prego era um cara muito contraditório, polêmico. Por seu temperamento sem papas na língua, muito gozador e até um pouco agressivo, conquistara alguns inimigos no morro. Mas era muito inteligente. Para se ter uma ideia de como era o Prego basta contar uma historinha.
Reunião da Ala dos Compositores, na sede do Buraco Quente. Discutia-se um assunto muito polêmico. Desde o começo, Prego, bêbado, cochilava na cadeira. Como não chegassem a um acordo, colocaram o caso em votação. Ao chegar sua vez de votar, Prego ainda dormia. Acordaram-no. Prego, na certa, sequer sabia do que se tratava.
Anda, Prego, vota logo, é sua vez − disse, irritado, um colega.
E como está essa porra? perguntou ele
Tem 17 votos sim e dois não − respondeu alguém.
Então eu voto não, porque vocês são uns idiotas e só aprovam besteiras − disparou Prego e voltou a cochilar.

*****


Neide, porta-bandeira e Delegado, mestre-sala.

Delegado nasceu de uma família muito humilde, do Santo Antônio, na Mangueira, e seu pai teve 21 filhos. Delegado era dos mais moços. Tantos eram os filhos e filhas que seu pai sequer sabia o nome de todos. Ficava sentado em frente à porta do barraco e quando queria alguma coisa, chamava o primeiro que estivesse por perto: “Esse menino (ou “essa menina”) vem cá”. Pelo nome jamais os chamava: corria o risco muito grande de se enganar.
Como acontecia em muitas famílias pobres há uns 70 anos*, Delegado e seus irmãos não foram registrados. Em meados dos anos 50, ele sequer sabia com certeza seu nome: tinha dúvidas se se chamava Ézio, Édio ou Hélio. Hoje, está registrado como Hélio, nascido em 1922. Mas não há quem possa jurar sobre a exatidão dessa data.
Durante um desfile, Delegado não desviou a tempo a cabeça da bandeira conduzida por Neide que vinha rapidíssima. A bandeira roçou sua cabeleira e esta caiu. Foi um sufoco. Lá se iam por terra aqueles dez pontos tão garantidos.
Mas Delegado não se afobou. Deu mais uma volta em torno da porta-bandeira, parou pouco à frente da cabeleira humilhada, que jazia no asfalto, e deu seus passos característicos: ajoelhava-se e dobrava o corpo para trás até tocar com a cabeça no chão. Só que, desta vez, tocou dentro da cabeleira e, orgulhoso, levantou-se com ela presa à cabeça. Só foi preciso um toque quase invisível para recompor-se. As arquibancadas tremeram de alto abaixo sob os aplausos a Delegado. E os dez pontos, mais garantidos que nunca.

* Ano de 1998. 


P.S. Morreu na manhã desta segunda-feira, 12 de novembro de 2012, aos 90 anos, o mais famoso mestre-sala do carnaval carioca. Hélio Laurindo da Silva, conhecido como Delegado (por “prender” as cabrochas na conversa), era presidente de honra da Mangueira e estava internado na Clínica Santa Branca, em Duque de Caxias, com câncer. A notícia foi confirmada pelo presidente da escola de samba, Ivo Meirelles, em seu blog e na página que mantém no Facebook.

(Notícia de O Globo)

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Xangô arma a Estação Primeira para o desfile com incrível facilidade e competência. Dizia-se que Xangô arrumava a escola “com três apitos”. E é verdade. Extremamente sério e responsável, não cede um milímetro quando se trata de defender a apresentação da escola.
Com ouvido musical perfeito, sabe com clareza quando a bateria vai mal, quando há perigo de atravessar o samba, quando uma ala está fora de ritmo, quando há necessidade de adiantar ou atrasar um desfile. Xangô, na direção de harmonia, é garantia de sucesso.
Durante o pouco tempo em que esteve afastado, jamais a Mangueira se apresentou com todas as suas características, com toda sua força como quando ele está, no apito pendurado ao peito por grossas correntes douradas, à frente da Escola.
Uma vez, durante um ensaio no Cerâmica, alguns mangueirenses conversavam no meio quadra. Num momento, a bateria desafinou (atravessou), saiu de tom, um horror. Xangô disse apenas: “Guenta aí que vou dar um jeito nisso!” E saiu tranquilo, gingando, em direção à bateria. Parou em frente a ela e apurou o ouvido. De repente deu um salto pra frente, apontou para um tamborim que estava bem no fundo, fez um gesto característico e disse enérgico: “Para!”. O tamborim calou-se e, imediatamente, a bateria voltou ao ritmo certo. Ele descobrira um tamborim desafinado entre dezenas de instrumentos.


Xangô pelo caricaturista Lan 

Da revista “Mangueira 70 anos: 1928/1998”,
distribuída no Sambódromo em 1998.

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