segunda-feira, 17 de junho de 2019

O Anjo da Vitória

J. Simões Lopes neto


- Foi depois da batalha de Ituzaingo, no passo do Rosário, pra lá de São Gabriel, do outro lado do banhado de Inhatium. Vancê não sabe o que é inhatium?

É mosquito: bem posto nome!

Banhado de Inhatium... Virge' Nossa Senhora!... mosquito, aí, fumaceia, no ar!

Eu era gurizote: teria, o muito, uns dez anos; e andava na companha do meu padrinho, que era capitão, para carregar os peçuelos e os avios do chimarrão.

As causas da peleia não sei, porque era menino e não guardava as conversas dos grandes; o que eu queria era haraganear; mas, se bem me lembro, o meu padrinho dizia que nós estávamos mal-acampados, e estransilhados, pensando culatrear o inimigo, mas que este é que nos estava nos garrões; não havia bombeiros nem ordem, que o exército vinha num berzabum, e que o general que mandava tudo, que era um tal Barbacena, não passava de um presilha, que por andar um dia a cavalo já tinha que tomar banhos de salmoura e esfregar as assaduras com sebo...

O meu padrinho era um gaúcho mui sorro e acostumado na guerra, desde o tempo das Missões, e que mesmo dormindo estava com meio ouvido, escutando, e meio olho, vendo...; mesmo ressonando não desgrudava pelo menos dois dedos dos copos da serpentina...

Num escurecer, enquanto pelo acampamento os soldados carneavam e outros tocavam viola e cantavam, ou dormiam ou chalravam, o que sei é que nesse escurecer o meu padrinho mandou pegar os nossos cavalos; e encilhamos até a cincha; e depois nos deitamos nos pelegos, com os pingos pela rédea, maneados: ele, armado, mateando; eu, enroscadito no meu bichará, e o ordenança, que era um chiru ombrudo, chamado Hilarião, pitando.

Eu, como criança, peguei logo a cochilar.

Amigo! Vancê creia: o coração às vezes, trepa, dentro da gente, o mesmo que jaguatirica por uma árvore acima!...

Lá pelas tantas, ouviu-se cornetas e clarins e rufos de caixa...; mas o som dos toques andava ainda galopeando dentro do silêncio da noite quando desabou em cima de nós a castelhanada, a gritos, e já nos foi fumegando bala e bala!...

Numa arrancada dessas é que o coração trepa, dentro da gente, como gato...

- Desmaneia e monta! gritou o meu padrinho; ele que falava, eu e o chiru que já estávamos enforquilhados nas garras.

E por entre as barracas e ramadas; por entre os fogões meio apagados, onde ainda havia fincados espetos com restos de churrascos; por entre as carretas e as pontas de bois mansos e lotes de reiunos; no fusco-fusco da madrugada, com uma cerraçãozita o quanto-quanto; por entre toques e ordens e chamados, e a choradeira do chinaredo e o vozerio do comércio, já no cheiro da pólvora e em cima dos primeiros feridos, formou-se o entrevero dos atacantes e dos dormilões.

E cantou o ferro... e choveu bala!...

O meu padrinho levantou na rédea o azulego: e de espada em punho, o chiru, com uma lança de meia-lua - e eu entre os dois, enroscadito no meu bichará - nos botamos ao grosso do redemoinho, para abrir caminho para o quartel-general do dito Barbacena.

Como lá chegamos, não sei.

A espada do meu padrinho estava torcida como um cipó, e vermelha, e o azulego tinha uns quantos lanhos na anca; o Hilarião tinha um corte de cima a baixo da japona, e eu levei um lançaço, que por sorte pegou no malote do poncho.

Mas, varamos.

No quartel do Barbacena ninguém se entendia.

A oficialada espumava, de raiva, e um cutuba, baixote, já velho, botava e tirava o boné e metia as unhas na calva, furioso, de ralar sangue!...

Esse, era um tal general Abreu... um tal general José de Abreu, valente como as armas, guapo como um leão... que a gauchada daquele tempo - e que era torenada macota! - bautizou e chamava de - Anjo da Vitória!

Esse, o cavalo dele não dava de rédea para trás, não! Esse, quando havia fome, apertava o cinto, com os outros e ria-se!

Esse, dormia como quero-quero, farejava como cervo e rastreava como índio...; esse, quando carregava, era como um ventarrão, abrindo claros num matagal.

Com esse... castelhano se desguaritava por essas coxilhas o mesmo que bandada de nhandu, corrida a tiro de bolas!...

Era o Anjo da Vitória, esse!

Daí a pouco apareceu um outro oficial, mocetão bonito, que era major. Este chamava-se Bento Gonçalves, que depois foi meu general, nos Farrapos.

Os dois se conversaram, apalavraram os outros e tudo montou e tocou pra rumos diferentes.

No acampamento estrondeava a briga.

Já tinha amanhecido.

Eu andava colado ao meu padrinho, como carrapato em costela de novilho. Por onde ele andou, andei eu; passou, passei; carregava, eu carregava; fazia cara-volta, eu também.

Naquelas correrias, o meu bicharazito, às vezes, enchia-se de vento, e voava, batia aberto, que nem uma bandeira cinzenta...

O major Bento Gonçalves formando a cavalaria, aguentava como um taura as cargas do inimigo, para ir entretendo, e dar tempo à nossa gente de quadrar-se, unida.

Os castelhanos, mui ardilosos, logo que aquentou o sol tocaram fogo nos macegais onde estava o carretame; o vento ajudou, e enquanto eles carcheavam a seu gosto, uma fumaça braba tapou tudo, do nosso lado!...

Então o general Abreu no alto do coxilhão formou os seus esquadrões: o meu padrinho comandava um deles.

Formou, fez uma fala à gente e carregou, ele, na frente, montado num tordilho salino, ressolhador.

Oh! velho temerário! Firme nos estribos, com o boné levantado sobre o cocuruto da cabeça, a espada apontando como um dedo, faiscando, o velhito ponteou aquela tormenta, que se despenhou pelo lançante abaixo e afundou-se e entranhou-se na massa cerrada do inimigo, como uma cunha de nhanduvai abrindo em dois um moirão grosso de guajuvira... E deixando uma estiva de estrompados, de mortos, de atarantados, de feridos e de morrentes - como quando rufa um rodeio xucro... vancê já viu? - varou para o outro lado, mandou fazer - alto, cara-volta! - e mal que reformou os esquadrões, os homens chalrando e rindo, a cavalhada, de venta aberta, bufando ao faro do sangue e trocando orelha, pelo alarido, o velho já se bancou outra vez na testa, gritou Viva o Imperador! - e mandou - Carrega!

E a tormenta da valentia rolou, outra vez, sobre o campo.

Mas nesta hora maldita, a fumaça maldita nos rodeava e cegava; e mal íamos dando lance à carga - eu, folheirito, abanando no mais o meu bichará pra o Hilarião - rebentou na vanguarda e num flanco a fuzilaria, e vieram as baionetas... e uma colubrina, que nos tiroteavam donde não podia ser!...

A nossa cavalaria se enrodilhou toda, fazendo uma enrascada de mil diabos... e enquanto o tiroteio nos estraçalhava, que os ginetes e os cavalos caíam, varados, e que, por fim, os próprios esquadrões já iam rusgando uns com os outros - aí, amigo, andei eu às pechadas! - enquanto isso... veio uma rajada forte de vento, que varreu a fumaça, limpou a vista de todos e mostrou que era a nossa infantaria que nos tinha feito aquela desgraça...

Então, por cima dos mortos e dos feridos houve um silêncio grande, de raiva e de pena... como de quem pede perdão, calado... ou de quem chora de saudade, baixinho...

Lá longe, os castelhanos, enganados, tocaram a retirada. O nosso quartel-general também tocou a retirada.

Pegou a debandada; dispersava-se a gente por todos os lados, aos punhados, botando fora as pederneiras, as patronas; muitos sotretas fugiram de cambulhada com o chinerio...

Metades de batalhões arrinconavam-se, outras encordoavam marcha.

Os ajudantes galopavam conduzindo ordens... mas parecia que toda a força ia fugindo duma batalha perdida, que não era, porque tudo aquilo era da indisciplina, somentes.

O Anjo da Vitória lá ficou, onde era a frente dos seus esquadrões, crivado de balas, morto, e ainda segurando a espada, agora quebrada.

Campeei o meu padrinho: morto, também, caído ao lado do azulego, arrebentado nas paletas por um tiro de peça; ali junto, apertando ainda a lança, toda lascada, estrebuchava o Hilarião, sem dar acordo, aiando, só aiando...

Deitado sobre o pescoço do cavalo, comecei a chorar.

Peguei a chamar:

- Padrinho! padrinho!...

- Hilarião! Meu padrinho!...

Apeei-me, vim me chegando e chamando − padrinho!... padrinho!... e tomei-lhe a bênção, na mão, já fria...; puxei na manga do chiru, que já nem bulia...

Sem querer fiquei vendo as forças que iam-se movendo e se distanciando... e num tirão, quando ia montar de novo, sem saber pra quê... foi que vi que estava sozinho, abandonado, gaudério e gaúcho, sem ninguém pra me cuidar!...

Foi então, que, sem saber como, já de a cavalo, enquanto sem eu sentir as lágrimas caíam-me e rolavam sobre o bichará, os olhos se me plantaram sobre o tordilho salino... sobre o coto da espada... sobre um boné galoado...

E o cabelo me cresceu e fiquei de choro parado... e ouvi, patentemente, ouvi bem ouvido, o velho macota, o Anjo da Vitória, morto como estava, gritar ainda e forte - Viva o Imperador! Carrega!

O meu bicharazito se empantufou de vento, desdobrou-se, batendo como umas asas... o mancarrão bufou, recuando, assustado... e quando dei por mim, andava enancado num lote de fujões...

Comi do ruim... Vê vancê que eu era guri e já corria mundo...

*****

Observação final:

Este conto faz referencia a Batalha do Passo do Rosário, quando tropas argentinas e uruguaias invadiram o Brasil.


Batalha de Ituzaingó, de José Wasth Rodrigues, 
Acervo do Museu Paulista da USP

A Batalha do Passo do Rosário foi a maior batalha campal ocorrida em solo brasileiro. Com o apoio das Províncias Unidas do Prata (atual Argentina) a revolta de Juan Lavalleja contra o domínio brasileiro sobre o Uruguai, D. Pedro I declara guerra àquelas províncias em janeiro de 1826. De início o imperador brasileiro pouca atenção deu a esta revolta, dado que se encontrava frente a outras que ocorriam em províncias consideradas mais importantes ou estratégicas (Maranhão, Pará, Pernambuco, Bahia e na própria capital, Rio de Janeiro). A Batalha do Passo de Rosário foi resultado do avanço do exército sob comando de Alvear (Exército Republicano) no final de janeiro de 1827 sobre as pequenas vilas e cidades da fronteira situadas do lado brasileiro. O Marquês de Barbacena começa a perseguição do inimigo, vindo a achá-lo disposto a batalha no dia 19 de fevereiro deste ano. Essa batalha não foi desastrosa, de forma alguma, mas, ao contrário, honrosa para as armas brasileiras e para o General que comandou, o Marquês de Barbacena.

No conto ele cita: "Esse, era um tal general Abreu... um tal general José de Abreu, valente como as armas, guapo como um leão… que a gauchada daquele tempo — e que era torenada macota! — batizou e chamava de — Anjo da Vitória! Esse, o cavalo dele não dava de rédea para trás, não! Esse, quando havia fome, apertava o cinto, com os outros e ria-se! Esse, dormia como quero-quero, farejava como cervo e rastreava como índio...; esse, quando carregava, era como um ventarrão, abrindo claros num matagal."

José de Abreu nasceu em Povo Novo (município de Rio Grande-RS), em 1770 ou 1771 e era filho de João de Abreu, natural de Guimarães-Portugal e de Ana Maria (uma índia ao que tudo indica), nascida no Rio Grande de São Pedro.


José de Abreu - o Barão de Cerro Largo

Assim consta na biografia feita pelo Barão do Rio Branco, mas na Genealogia das Famílias feita pelos Mórmons, consta que João de Abreu casou com Maria de Souza, natural da Ilha Terceira/Açores-Portugal e que José de Abreu teria nascido em Maldonado-Uruguai, à época bispado de Buenos Aires.

Foi herói nacional das Guerras da Cisplatina, considerado um homem de extrema valentia e vencedor de inúmeras batalhas, conquistando e anexando às terras brasileiras a Província conhecida como da Cisplatina (hoje Uruguai). Ainda durante o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, combateu os castelhanos, libertando São Borja em 1814.

Foi Governador de Armas do Rio Grande do Sul e Marechal-de-Campo. Em razão do seu excepcional valor militar e dedicação, D. Pedro I, por decreto Imperial de 12.10.1825, agraciou-o com o título de Barão de Cerro Largo.

Faleceu em 20.02.1827, na histórica Batalha do Passo do Rosário (também conhecida como batalha de Ituzaingó), famoso episódio nas lutas da época e considerada a maior batalha campal ocorrida em solo brasileiro. Sua morte ocorreu tragicamente, quando comandava 560 homens. Por um equívoco, foi considerado como inimigo pelas tropas que provocava defender e morreu pelas balas de seus próprios compatriotas, ao tentar conter seus soldados quando eles recuaram e correram para salvar-se, no momento que uma coluna da Cavalaria de orientais avançou de surpresa. Uma triste ironia do destino, para um homem que liderava seus comandados com bravura e coragem inigualáveis.

A Batalha do Passo do Rosário

Alcy Cheuiche

No amanhecer do dia 20 de fevereiro de 1827, as tropas argentinas e uruguaias, sob o comando do General Alvear, ocupavam as margens do Rio Santa Maria, chamado pelos guaranis de Ituzaingô (água que cai do barranco), no local onde é hoje a cidade de Rosário do Sul. A apenas duas léguas de distância, junto a atual BR-290, as tropas brasileiras tinham uma visão ampla sobre o teatro de operações.

O comandante-em-chefe, Marquês de Barbacena, sabia que os mil cavalarianos do coronel Bento Gonçalves eram poucos para enfrentar os 3,5 mil do coronel Lavalleja. O plano era deixar que o caudilho uruguaio atacasse imediatamente, mesmo com o sol nos olhos, para ser destroçado a tiros de canhão.

Como o uruguaio tardava, o velho General José de Abreu tomou a frente de 400 campeiros gaúchos e lançou-os contra a cavalaria inimiga. Lavalleja sustentou o impacto, e os sobreviventes daquela loucura tiveram que fugir a toda brida, com os inimigos em seu encalço. Imaginem o drama do comandante da artilharia brasileira. Se mandasse abrir fogo, impediria que Lavalleja rompesse o front de nossa infantaria, mas os canhões atingiriam primeiro os cavalarianos brasileiros. Hesitou apenas por alguns segundos, antes que o troar da metralha ensurdecesse a todos os soldados. Quando a fumaça se dissipou, jaziam mortos pelos campos centenas de cavaleiros, amigos e inimigos. E, entre eles, o general José de Abreu, como narra Simões Lopes Neto no belíssimo conto O Anjo da Vitória.

Graças a Bento Gonçalves, que conseguiu proteger a retirada, a Batalha do Passo do Rosário não foi uma derrota completa para o Brasil. Ambos os exércitos partiram, um para leste e outro para oeste, restando como resultado positivo de tantas mortes a certeza de que os diplomatas deviam encontrar uma maneira de fixar definitivamente as fronteiras do pampa. E isso foi feito com o tratado que oficializou a independência do Uruguai, em 1828, embora essa independência, na realidade, já tivesse começado, desde 1810, com as lutas de Artigas pela liberdade da Banda Oriental do Rio Uruguai.

A Batalha do Passo do Rosário deve, assim, ser considerada como o marco inicial de uma grande amizade entre as três nações. E é por isso que o livro Ituzaingô descreve os acontecimentos sob a visão dos dois lados da fronteira. Uma narrativa sem “mocinhos” nem “bandidos”, apenas fiel à História. 

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