Em 1989, a revista Veja fez um
suplemento em comemoração aos 100 anos da República. A graça é que os textos
foram escritos como se os jornalistas vivêssemos na época da proclamação. Era
como se estivéssemos cobrindo-a na semana mesma de 15 de novembro. Eu saíra
fazia pouco tempo da Veja para ser editor-executivo da Exame. Mesmo assim, me
encomendaram dois artigos: um perfil do Barão de Mauá, o maior empresário
brasileiro de então, e um perfil de um latinista arrebatado, Castro Lopes.
Lopes quis purificar a língua falada no Brasil de anglicismos e galicismos,* e
produziu neologismos como ludopédio para substituir o futebol. Quase nada
vingou, como você poderá ver no quadro posto no pé deste artigo, exceto por uma
ou outra palavra como roupão, que ocupou o lugar do peignoir. Você pode
apreciar o esforço titanicamente frustrado de Lopes nas linhas abaixo.
Paulo Nogueira
*anglicismos: palavras inglesas; galicismos: palavras
francesas.
Vista-se o roupão
O latinista Castro Lopes sacode os literatos
ao criar palavras que substituíam galicismo.
É possível que o leitor esteja lendo esta revista agora em sua
cama, com a ajuda de seus nasóculos e à luz suave de um lucivelo. Os artigos
escritos pelos alvissareiros misturam-se, harmoniosamente, aos preconícios que
louvam as virtudes de sortidos produtos. Faz calor neste final de primavera, e
decerto o nosso leitor não retira há muito tempo de sua gaveta o focale que lhe
aquece o pescoço no frio. E ele provavelmente terá reparado como é grande, nos
últimos tempos, o número de ludâmbulos que, vindos de outros Estados e até de
outros países, se abalam a conhecer os encantos da cidade.
Não te sintas o mais ignaro dos
brasileiros se, no parágrafo anterior, tropeçaste em vocábulos como “nasóculos”,
“Iucivelo”, “alvissareiro”, “preconício”, “focale” e “ludâmbulos”. Consultados
sobre o significado de tais palavras, quase todos os jornalistas desta revista
que ora tens em mãos tropeçaram exatamente onde foste ao chão. Um, mais
curioso, tratou de correr ao Caldas Aulete, mas foi inútil. Cerrou as páginas
do dicionário tão no ar quanto as abrira. É que todas aquelas palavras acabam
de ser criadas pelo gramático carioca Antônio de Castro Lopes, 62 anos, um
latinista de nomeada que é médico por profissão e decidiu investir contra os
galicismos e anglicismos que, a seu ver, contaminaram atrozmente a língua
pátria. As palavras a que Castro Lopes tenta dar vida e aquelas que ele
pretende suprimir estão arroladas no recém-lançado Neologismos Indispensáveis e
Barbarismos Dispensáveis, livro que serviu de tema para conversas, e piadas,
trocadas entre o ex-imperador Pedro II e o Visconde de Taunay.
“Não é de desenterrar palavras
mortas e sepultadas que se trata”, explica o autor no prefácio do opúsculo.
“Mas de limpar, de expurgar a linguagem vernácula de vozes bárbaras, de
construções contrárias à índole daquela, e de criar com bons elementos termos
que no idioma português faltem para traduzir os exóticos”. Castro Lopes não
tenta promover reformas apenas na língua portuguesa. Sugere muitas outras. Tem,
pronta, uma fórmula para acabar com a dívida interna e externa do país, ou,
pelo menos, é o que garante. Tal fórmula apóia-se numa moeda universal, o ponto
alto da plataforma com a qual se lançou candidato a deputado provincial pelo
Rio de Janeiro. Não se conhece nenhuma adesão de outros países à tal da moeda
universal do latinista, mas o fato é que ele se elegeu deputado.
Acusem-no, os que quiserem, de
purista extremado, mas não o tomem por rabugento. Será um equívoco. Castro
Lopes tem um surpreendente bom humor. Daria um excelente cômico se quisesse.
Observe-se sua investida contra a palavra peignoir. Não cria, no caso, um
neologismo. Vai buscar o vocábulo português que julga correspondente: roupão.
Dirigindo-se ao “belo sexo”, Castro Lopes pergunta: “Por que empregareis o
termo francês peignoir quando esse traje não serve para o fim que o nome
indica?” Logo depois, lança, às damas nacionais, um apelo que revela seu
talento humorístico: “Despi, portanto, eu vos suplico, o peignoir francês, e
vesti o vosso roupão”.
Se daqui a 100 anos os
neologismos do senhor Castro Lopes estarão vivos ou mortos, ninguém pode saber.
Alguém usará a expressão “protofonia” como abertura de um ensaio, uma ópera,
uma peça? Haverá crianças que peçam aos pais que façam um convescote domingo no
parque, em vez de piquenique? Em duas crônicas recentes, o escritor Machado de
Assis referiu-se ao trabalho de Castro Lopes com sarcasmo reprovador. O
latinista não se intimida. Diz-se à boca miúda que, a cada golpe desferido por
um adversário, responde com um toast solitário à cruzada pelo vernáculo –
perdão, onde se leu “toast”, leia-se brinde.
Pérolas de um latinista
Como é e como fica
Abajur – Lucivelo ou lucivéu
Avalanche – Runimol
Bijuteria – Joalheira
Boulevard – Calçada
Cachecol – Focale
Chalé – Castelete
Champignons – Cogumelos
Claque – Venaplauso
Debut – Estreia
Engrenagem – Entrosagem
Feérico – Fatídico
Massagem – Premagem
Mise-en-scène – Encenação
Nuance – Ancenúbio
Pince-nez – Nasóculos
Piquenique – Convescote
Reclame – Preconício
Repórter – Alvissareiro
Turista – Ludâmbulo
(Da revista Veja, 15 de novembro de 1989,
Edição Especial: 100 da República)
O Dr. Antônio de Castro Lopes
(1827-1901) foi uma figura curiosa das letras brasileiras no século XIX.
Latinista famoso, ele publicou dicionários e livros de caráter linguístico,
além de uma variedade de escritos tematizados em astrologia, espiritismo e
homeopatia, também exercendo o ofício de professor, médico, teatrólogo e poeta.
Segundo Bortolanza (1999), fundou o primeiro banco hipotecário do país, o
"Banco Predial", além da "Companhia Serviço Doméstico", da
"Caixa Mutuante" e da primeira "Sociedade Cooperativa de
Consumo". Era conhecedor de tudo, um "Larrousse ambulante" nas
palavras de V. de Algerama (BORTOLANZA, 1999, p. 303), que tinha resposta para
qualquer questão, mesmo que nem sempre bem fundamentada.
Em 1889, Castro Lopes iniciou uma
série de pequenos artigos na Gazeta de Notícias propondo a substituição de
estrangeirismos frequentes na língua portuguesa por vocábulos novos elaborados
por ele mesmo, a maioria a partir do latim. Os textos e a busca incessante do
filólogo pela pureza da etimologia da língua não passaram despercebidos por
Machado de Assis, sendo tema de três crônicas da série Bons Dias!
Dizem que o país dos excêntricos é a Inglaterra, mas tenho pra mim que onde há mesmo excêntricos é no Brasil. Este senhor é notável. Como João Simões Lopes Neto, era, sem epalhafato, criativo em tudo o que se metia. Infelizmente não posso agora desenvolver essas ideias, mas vejam lá os cartões postais criados por SLN para comemorar os fastos da História Nacional, a sua Cartinha de Leitura, a sua fábrica de fósforos, o seu interesse por piscicultura. Achei interessante Castro Lopes ter-se interessado em abolir os anos bissextos. Que solução (quase certamente errada) criativa terá ele dado a esse assunto?
ResponderExcluirBoa observação...
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