quarta-feira, 7 de agosto de 2019

50 verbetes para um dicionário de Literatura Brasileira

Em 15 de agosto de 1952, no Comício, semanário criado por Rubem Braga, Joel Silveira e Rafael Corrêa de Oliveira, foi publicada a matéria “50 verbetes para um dicionário de literatura brasileira”. O autor era ninguém menos do que Carlos Drummond de Andrade:


01 - Academia: Instituição que distribui prêmios de quatro mil cruzeiros, sujeito a desconto, não convindo por isso ser atacada, embora também não seja distinto elogiá-la publicamente.

02 - Admiração: Fenômeno peculiar à adolescência, como as espinhas e a muda de voz, desaparece de uma hora para outra ou se converte em autoadmiração.

03 - Amigo: Escritor de muito talento, até segunda ordem.

04 – Antologia: Espécie de ônibus ou lotação, recomendável para a estreia do literato que tenha pressa de chegar à posteridade.

05 - Associação de escritores; Partido pró ou contra alguma coisa alheia à classe dos escritores.

06 – Ataque: Maneira explosiva de conseguir que sejamos notados e mesmo respeitados, se praticada habilmente.

07 – Bar; Lugar onde as pessoas de talento continuam a tê-lo, e as que não o têm o adquirem provisoriamente, desde que não falem.

08 – Biblioteca: Lugar de passagem; seguido do adjetivo Nacional, não costuma ser frequentado.

09 - Café: Sítio mitológico onde os antigos se reuniam para ler seus escritos e ouvir com resignação os do próximo.

10 - Carta: Instrumento de comunicação em desuso pelos seus inconvenientes; o destinatário a divulgava caído ou averbava no Registro de Títulos, para oprimir o remetente.

11 - Colofão*: Inscrição para certificar ao leitor, em certas obras, que tudo tem limite.

12 – Conferência: Ato a que se chega atrasado e do qual se sai antes de terminar, causando irritação e inveja ao conferencista.

13 – Conto: Narrativa em que deve acontecer alguma coisa ou nada, conforme seja o autor partidário do clube Maupassant ou do clube Mansfield; no segundo caso, também chamada conversa mole.

14 - Dedicatória: Letra promissória de valor indeterminado, cujo resgate pode deixar de ser feito sem dano para o crédito do emitente.

15 - Diário: Livro ou caderno de pelo menos 200 páginas, onde se escreve debaixo do segredo aquilo que se deseja levar ao conhecimento de todo mundo.

16 - Direito autoral: Direito que assiste ao autor de editar-se à própria custa.

17 - Ecológico: Diz-se do romance que tenha mais cheiro de terra do que estilo. Variante: telúrico.

18 - Editor: Indivíduo mesquinho e destituído de imaginação, que recusou os nossos originais.

19 - Elogio: Vide gazua, maconha e compromisso.

20 - Escritor: Entidade indefinível; em caso de emergência, aquele que escreveu um bilhete, ou poderia tê-lo escrito.

21 - Ex-libris*: Artifício com que o dono de um livro se torna um pouco seu autor, colaborando numa página.

22 - Existencialista: Menor cuidadosamente despenteada, com ou sem franja na testa, que cultiva o complexo de Eletra das 17 às 19 horas no bar, e mais tarde na boate; seus autores de cabeceira são Heidegger, Jean Marais, Sartre e Prevert-Kosma.

23 - Geração: Maneira coletiva e rotativa de ter talento; há casos de indivíduos que mudam de geração.

24 - Glória: Faculdade de conceder autógrafos durante a conferência ou a exposição, sem ser o conferencista ou o pintor.

25 - Hermetismo: Resultado imprevisto e feliz da pobreza de vocabulário.

26 - Ilustrador: Desenhista que se abstém de ler o poema ou o conto, a fim de melhor interpretá-lo.

27 - Kafka: Escritor tcheco, imitador de alguns escritores brasileiros.

28 - Leitura: Vício secreto; a higiene mental o proscreve como nocivo à carreira literária.

29 - Livraria: Lugar onde as moças sem namorado vão comprar romances antes de partir em férias.

30 - Memórias: Aplicação da capacidade de mentir, pela sua conversão em prazer e renda.

31 - Mensagem: Conteúdo de uma obra literária, que afina com a nossa convicção ou tendência, ou que simplesmente lhe atribuímos num momento de irreflexão.

32 – Mestre: Designação satírica que infunde à vítima certo prazer.

33 - Métrica: Arte de fazer passar pelos dedos o que não entrou espontaneamente pela orelha.

34 - Novo: Indivíduo de idade indeterminada, que fala mal dos outros de certa idade.

35 - Orelha: Dizeres na borda da capa de um livro, que dispensam a leitura dele; não devem ser grandes.

36 - Poeta do povo: Indivíduo encarregado de evitar que o povo goste de poesia.

37 - Prefácio: Texto laudatório assinado por um amigo do autor, e ultimamente substituído pela orelha (vide este nome), de autoria do próprio escritor.

38 - Província: Terra assaz deliciosa, depois que o natural da mesma se mudou para o Rio.

39 - Quarenta e cinco: Número cabalístico, que esconjura os maus espíritos e habilita ao conhecimento de T. S. Eliot.

40 - Revisor: Autor de algumas das melhores páginas da literatura brasileira.

41 - Revista: Peça de artilharia grossa, para conquista de posição ou situação literária; provida de entranhas humanas, padece às vezes de comoção intestina.

42 - Rima: Repetição de som no fim de dois ou mais versos, produzindo efeito desagradável em nossos poemas; recurso vil nos dos outros.

43 - Romancista do povo: Técnico em palavrões.

44 - Soneto: Pedra de toque do poeta; usa-se atualmente o shakespeariano, quer na disposição formal quer nos costumes.

45 - Suplemento literário: Ajuntamento lícito ou ilícito de escritores, conforme fazemos ou não parte dele.

46 - Tradutor: Indivíduo paciente, que manipula duas ou mais línguas, para não ser autor em nenhuma.

47 - Trinta: Irmão pobre de vinte e dois.

48 - Uísque: Designação geral de uma série de autores escoceses, de conhecimento e cultivo obrigatório para uma boa reputação literária; os escritores norte-americanos do mesmo gênero não são muito manuseados.

49 - Velho: Indivíduo que, mesmo usando óculos bifocais, não enxerga a nossa grandeza.

50 - Vinte e dois: Tigre, na classificação do Barão de Drummond; palhaço, no consenso da nova geração.


Carlos Drummond de Andrade por William

* Colofão, nos livros atuais, inscrição final onde o tipógrafo indica a data e o lugar da feitura da obra.

* Ex-libris é a etiqueta que se coloca dentro dos livros, como sinal de propriedade.



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