Em 15 de agosto de 1952, no Comício,
semanário criado por Rubem Braga, Joel Silveira e Rafael Corrêa de Oliveira,
foi publicada a matéria “50 verbetes para um dicionário de literatura
brasileira”. O autor era ninguém menos do que Carlos Drummond de Andrade:
01 - Academia: Instituição que
distribui prêmios de quatro mil cruzeiros, sujeito a desconto, não convindo por
isso ser atacada, embora também não seja distinto elogiá-la publicamente.
02 - Admiração: Fenômeno
peculiar à adolescência, como as espinhas e a muda de voz, desaparece de uma
hora para outra ou se converte em autoadmiração.
03 - Amigo: Escritor de muito
talento, até segunda ordem.
04 – Antologia: Espécie de ônibus
ou lotação, recomendável para a estreia do literato que tenha pressa de chegar
à posteridade.
05 - Associação de escritores;
Partido pró ou contra alguma coisa alheia à classe dos escritores.
06 – Ataque: Maneira explosiva de
conseguir que sejamos notados e mesmo respeitados, se praticada habilmente.
07 – Bar; Lugar onde as pessoas
de talento continuam a tê-lo, e as que não o têm o adquirem provisoriamente,
desde que não falem.
08 – Biblioteca: Lugar de
passagem; seguido do adjetivo Nacional, não costuma ser frequentado.
09 - Café: Sítio mitológico
onde os antigos se reuniam para ler seus escritos e ouvir com resignação os do
próximo.
10 - Carta: Instrumento de
comunicação em desuso pelos seus inconvenientes; o destinatário a divulgava
caído ou averbava no Registro de Títulos, para oprimir o remetente.
11 - Colofão*: Inscrição para
certificar ao leitor, em certas obras, que tudo tem limite.
12 – Conferência: Ato a que se
chega atrasado e do qual se sai antes de terminar, causando irritação e inveja
ao conferencista.
13 – Conto: Narrativa em que deve
acontecer alguma coisa ou nada, conforme seja o autor partidário do clube
Maupassant ou do clube Mansfield; no segundo caso, também chamada conversa
mole.
14 - Dedicatória: Letra
promissória de valor indeterminado, cujo resgate pode deixar de ser feito sem
dano para o crédito do emitente.
15 - Diário: Livro ou caderno
de pelo menos 200 páginas, onde se escreve debaixo do segredo aquilo que se
deseja levar ao conhecimento de todo mundo.
16 - Direito autoral: Direito
que assiste ao autor de editar-se à própria custa.
17 - Ecológico: Diz-se do
romance que tenha mais cheiro de terra do que estilo. Variante: telúrico.
18 - Editor: Indivíduo
mesquinho e destituído de imaginação, que recusou os nossos originais.
19 - Elogio: Vide gazua,
maconha e compromisso.
20 - Escritor: Entidade
indefinível; em caso de emergência, aquele que escreveu um bilhete, ou poderia
tê-lo escrito.
21 - Ex-libris*: Artifício com
que o dono de um livro se torna um pouco seu autor, colaborando numa página.
22 - Existencialista: Menor
cuidadosamente despenteada, com ou sem franja na testa, que cultiva o complexo
de Eletra das 17 às 19 horas no bar, e mais tarde na boate; seus autores de
cabeceira são Heidegger, Jean Marais, Sartre e Prevert-Kosma.
23 - Geração: Maneira coletiva
e rotativa de ter talento; há casos de indivíduos que mudam de geração.
24 - Glória: Faculdade de
conceder autógrafos durante a conferência ou a exposição, sem ser o
conferencista ou o pintor.
25 - Hermetismo: Resultado
imprevisto e feliz da pobreza de vocabulário.
26 - Ilustrador: Desenhista
que se abstém de ler o poema ou o conto, a fim de melhor interpretá-lo.
27 - Kafka: Escritor tcheco,
imitador de alguns escritores brasileiros.
28 - Leitura: Vício secreto; a
higiene mental o proscreve como nocivo à carreira literária.
29 - Livraria: Lugar onde as
moças sem namorado vão comprar romances antes de partir em férias.
30 - Memórias: Aplicação da
capacidade de mentir, pela sua conversão em prazer e renda.
31 - Mensagem: Conteúdo de uma
obra literária, que afina com a nossa convicção ou tendência, ou que
simplesmente lhe atribuímos num momento de irreflexão.
32 – Mestre: Designação satírica
que infunde à vítima certo prazer.
33 - Métrica: Arte de fazer
passar pelos dedos o que não entrou espontaneamente pela orelha.
34 - Novo: Indivíduo de idade
indeterminada, que fala mal dos outros de certa idade.
35 - Orelha: Dizeres na borda
da capa de um livro, que dispensam a leitura dele; não devem ser grandes.
36 - Poeta do povo: Indivíduo
encarregado de evitar que o povo goste de poesia.
37 - Prefácio: Texto
laudatório assinado por um amigo do autor, e ultimamente substituído pela
orelha (vide este nome), de autoria do próprio escritor.
38 - Província: Terra assaz
deliciosa, depois que o natural da mesma se mudou para o Rio.
39 - Quarenta e cinco: Número
cabalístico, que esconjura os maus espíritos e habilita ao conhecimento de T.
S. Eliot.
40 - Revisor: Autor de algumas
das melhores páginas da literatura brasileira.
41 - Revista: Peça de
artilharia grossa, para conquista de posição ou situação literária; provida de
entranhas humanas, padece às vezes de comoção intestina.
42 - Rima: Repetição de som no
fim de dois ou mais versos, produzindo efeito desagradável em nossos poemas;
recurso vil nos dos outros.
43 - Romancista do povo: Técnico
em palavrões.
44 - Soneto: Pedra de toque do
poeta; usa-se atualmente o shakespeariano, quer na disposição formal quer nos
costumes.
45 - Suplemento literário: Ajuntamento
lícito ou ilícito de escritores, conforme fazemos ou não parte dele.
46 - Tradutor: Indivíduo
paciente, que manipula duas ou mais línguas, para não ser autor em nenhuma.
47 - Trinta: Irmão pobre de vinte
e dois.
48 - Uísque: Designação geral
de uma série de autores escoceses, de conhecimento e cultivo obrigatório para
uma boa reputação literária; os escritores norte-americanos do mesmo gênero não
são muito manuseados.
49 - Velho: Indivíduo que,
mesmo usando óculos bifocais, não enxerga a nossa grandeza.
50 - Vinte e dois: Tigre, na
classificação do Barão de Drummond; palhaço, no consenso da nova geração.
Carlos Drummond de Andrade por William
* Colofão, nos livros atuais,
inscrição final onde o tipógrafo indica a data e o lugar da feitura da obra.
* Ex-libris é a etiqueta que se coloca dentro dos livros,
como sinal de propriedade.
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