sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Receita de vida

Eunice Jacques


Pega-se um quilo de farinha de trigo especial, um ovo, uma colher de sopa de açúcar e outra, de igual tamanho, com sal.

Debruçada no desafio, me vejo a fazer meu primeiro pão. A receita havia anotado enquanto Nietta fazia o seu próprio pão para me ensinar como era. Há tempos me surgiu essa vontade, de produzir o alimento bíblico, de fazê-lo com as minhas próprias mãos.

(E te dar, meu amor do desde sempre, como alimento o trigo que em algum lugar colhi com o meu afeto.)
  
 Depois, prepara-se um leite morno e esperto e esfarelam-se dois tabletes de fermento.

(Dois, paixão, são dois. Nem precisaria de um para meu carinho crescer quando tão seguido penso em ti.)

Também é necessário meia xícara de óleo.

Tudo vai para uma bacia onde, por final, se coloca o leite até grudar.

(Já te falei que a minha vida está presa à tua?)

Então, é preciso botar a mão na massa, literalmente. E sovar, e virar, e bater. E a massa vai ganhando contornos e aparências e resultados. E eu me encanto de ver o que produzo.

Percebo que existe um bocadinho de farinha na minha roupa e me preocupo com as mãos ocupadas, que são as minhas.

(Seria bom se já estivesses perto para tirar toda essa poeira da minha saudade.)

Em seguida é preciso cobrir a massa e deixar que cresça, que dobre o próprio volume.

(Queres saber? Hoje já te quero o dobro do que te queria ontem.)

Quando essa parte se completa, é obrigatório dividir aquele inchado monte em três e trabalhar cada parte separadamente.

(Ah, isso é difícil. Como posso dividir em três um afeto que é único e exclusivo e indispensável?)

Então, cada gordo pedaço vai para fôrmas untadas, deixando espaços entre a massa e o alumínio para que ela duplique de tamanho outra vez.

Dá-se um tempo para esse acontecimento e, mais tarde, liga-se o forno e se deixa que aqueça. O calor não pode ser muito forte, e nem pode ser muito fraco.

(Ora, isso eu não compreendo. Como posso ser tão fraca se te amo assim tão forte?)

Tão logo estejam cozidos, tomam-se os pães multiplicados, esparge-se água bem em cima, ou um lambuzado de gema. O alimento está pronto.

(O perfume fresco e quente da obra que terminei de fazer me atinge com intensidade da vida. E escolho o pão que te darei para comer, fatia por fatia lambuzada de geleia, na parte ainda melhor da minha própria receita.)

(Crônica do jornal Zero Hora, publicada em 1996)

Um comentário: