Jʼaccuse
Gilberto Schwartsmann, médico
Eu
sonhei que estava em Paris.
Era 13 de janeiro de 1898. Não era o intelectual Émile Zola
quem assinava, na capa do jornal LʼAurore, a carta aberta ao presidente
francês, intitulada Jʼaccuse − Eu Acuso. O signatário era eu. E o caso não era
o Dreyfus.
Dirigia-me
ao meu presidente. Alguém perguntou quem era eu para tal atrevimento. Respondi
que um brasileiro, médico e professor, com uma vida dedicada a ensinar,
pesquisar e cuidar da saúde das pessoas.
E
sem qualquer vinculação partidária. Era por respeito ao meu país que o acusava
de imprudência. Não se troca um ministro da Saúde que segue com rigor as
recomendações dos órgãos competentes, em meio a uma terrível pandemia e por
motivo fútil.
Eu
o acusava de desrespeitar o distanciamento social e não usar máscara de
proteção, medidas recomendadas no mundo inteiro para reduzir o contágio pelo
vírus. Isto deixava a população confusa, sem saber o que fazer.
Eu
o acusava de não exercer a liderança que se espera de um presidente num momento
tão grave. Até pegar no sono, mais de 40 mil* brasileiros haviam morrido na
pandemia. Mil mortes por dia.
Eu
o acusava de questionar recomendações da OMS, instituição que é patrimônio da
humanidade. Acabou com a varíola e a poliomielite, enfrentou a aids e promove a
saúde em quase 200 países. E de comprometer a reputação da saúde pública
brasileira, reconhecida no mundo pelo controle da tuberculose, o combate ao
tabagismo, o tratamento da aids e por criar um sistema público de saúde, o SUS,
num país de mais de 200 milhões de habitantes.
Eu
o acusava por desqualificar recomendações das mais prestigiadas entidades
médicas, contrárias ao uso empírico da cloroquina na covid-19, fazendo a sua
apologia. Quando um presidente decide sobre medicamento?
E
que ele não permitisse que seus apoiadores promovessem ataques a hospitais,
jogassem fogo nas instituições da República e deixassem em paz as
universidades, últimos rincões das liberdades democráticas.
Como
no LʼAurore, eu reconhecia que era por livre vontade que eu publicava este
manifesto. E, por minha formação familiar, era incapaz de cultivar por alguém
sentimentos menores, como ódio ou rancor. Movia-me somente o amor à pátria.
No
JʼAccuse, Zola dizia: “Receba, senhor
presidente, minhas manifestações de mais profundo respeito”. Em meu sonho, eu
pedia respeito aos direitos e liberdades do povo brasileiro. E que, no
exercício da Presidência, ele não usasse termos de baixo calão. Fere a liturgia
do cargo.
Acordei
quando pedia que seu filho número tal − ele os chama assim − parasse de nos
ameaçar com a volta do AI-5 e o fim da democracia. Ficava feio fazer isto na
presença de um homem tão corajoso. Afinal, no sonho eu era Émile Zola.
(Do jornal Zero Hora, 16 de junho de 2020)
*40
mil mortos na data da publicação do texto. A cada dia o número de mortos e contaminados aumentarão muito mais...
P. S. Quando uma pessoa não tem empatia pelos ser humano, ela não se importa com ninguém!
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