Na
véspera do dia em que morreria, abatido por um câncer de laringe, Rubem Braga
escreveu ao seu único filho, o jornalista carioca Roberto Seljian Braga
(1937-2017), uma carta que sintetiza seu estilo seco, sóbrio, solenemente simples.
Rio de Janeiro, terça-feira, 18 de dezembro de 1990
Meu filho,
Após a cremação de meu corpo,
providencie que as cinzas sejam transportadas em urna de metal, e não de
madeira, e lançadas ao rio Itapemirirm. De maneira discreta, sem cortejo e sem
quaisquer cerimônias, por pouquíssimas pessoas da família, e de preferência no
local que só a sua tia Gracinha, minha irmã Anna Graça, tem conhecimento. De
preferência a ilha da Luz, ou a correnteza da ponte de Ferro ou a correnteza da
antiga ponte Municipal. Nem o dia deve ser divulgado, tudo isso para evitar
ferir suscetibilidades de pessoas religiosas, amigos e os parentes. Agradeça a
quem pretenda qualquer disposição em contrário, por mais honrosa que seja, mas
não ceda aos símbolos da morte, que assustam as crianças e entristecem os
adultos. Viva a vida.
Adeus.
Rubem Braga
Texto comparável à música de Noel Rosa
O charme de suas crônicas estava na combinação do realismo com certo rebuscamento literário recheado de romantismo. Ele partia de fatos e divagava. No livro As cem melhores crônicas brasileiras, organizado pelo jornalista Joaquim Ferreira dos Santos em 2005, Rubem Braga comparece com quatro textos. Entre 64 autores, empataram com ele apenas Luis Fernando Veríssimo e Carlos Heitor Cony.
Na
introdução do livro, Joaquim compara as crônicas de Braga à música de Noel
Rosa. Situa a origem de gênero literário ligeiro nos folhetins do século XIX,
quando alguns escribas de valor eram escalados para comentar os fatos da
semana. Bem humorados, esses textos foram moldados inicialmente por escritores
como José de Alencar e Machado de Assis, ambos trabalhando para veículos de
imprensa do Rio.
No
correr das décadas, inúmeros jornalistas ou artistas deram vida às crônicas,
principalmente na então capital da República. João do Rio, Antonio Maria,
Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Chico Buarque, Caetano Veloso,
Paulo Mendes Campos e Vinicius de Moraes trilharam esse caminho, sempre afinado
com o espírito brincalhão dos cariocas. Mas onde houvesse um jornal de mediana
qualidade despontava um escriba talhado para ser cronista.
Segundo o poeta Manuel Bandeira, Braga era magnífico escrevendo sobre qualquer assunto, mas quando não tinha assunto era melhor ainda. Foi assim, com leveza e uma aparente falta de compromisso, que Braga se manteve na crista da onda por mais de 50 anos, atravessando diversos governos, a maioria deles autoritários.
(Do blog do Jornal do Comércio)
Despedida
E
no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse
uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma
separação como às vezes acontece em um baile de carnaval − uma pessoa se perde
da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor
para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito −
depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a
vida é que os despediu, cada um para seu lado − sem glória nem humilhação.
Creio
que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que
não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer
que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e
de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.
E
que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram
em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas
que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja
morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho?
Talvez não mereçamos imaginar que haverá outros verões; se eles vierem, nós os receberemos obedientes como as cigarras e as paineiras − com flores e cantos. O inverno − te lembras − nos maltratou; não havia flores, não havia mar, e fomos sacudidos de um lado para outro como dois bonecos na mão de um titeriteiro inábil.
Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pôde haver;
entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações?
Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos
penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra:
adeus.
A pequena palavra que se
alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo.
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