sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Graciliano Ramos e o Barão de Itararé

 

A Teoria das Duas Hipóteses

Sem demora, uma voz pastosa, hesitante, anunciou a teoria das duas hipóteses. Risos contagiosos interromperam com frequência a exposição.

Consegui entendê-la por alto. Otimista panglossiano. Apporelly sustentava que tudo ia muito bem. Fundava-se a demonstração no exame de um fato de que surgiam duas alternativas; excluía-se uma, desdobrava-se a segunda em outras duas; uma se eliminava, a outra se bipartia, e assim por diante, numa cadeia comprida.

Ali onde vivíamos, Apporelly afirmava, utilizando o seu método, que não havia motivo para receio.

Que nos poderia acontecer? Seríamos postos em liberdade ou continuaríamos presos. 

Se nos soltassem, bem: era o que desejávamos.

Se ficássemos na prisão, deixar-nos-iam sem processo ou com processo.

Se não nos processassem, bem: à falta de provas, cedo ou tarde nos mandariam embora. 

Se, nos processassem, seríamos julgados, absolvidos ou condenados.

Se nos absolvessem, bem: nada melhor, esperávamos.

Se nos condenassem, dar-nos-iam pena leve ou pena grande.

Se se contentassem com a pena leve, muito bem: descansaríamos algum tempo sustentados pelo governo, depois iríamos para a rua. 

Se nos arrumassem pena dura, seríamos anistiados, ou não seríamos.

Se fôssemos anistiados, excelente: era como se não houvesse condenação. 

Se não nos anistiassem, cumpriríamos a sentença ou morreríamos.

Se cumpríssemos a sentença, magnífico: voltaríamos para casa.

Se morrêssemos, iríamos para o céu ou para o inferno.

Se fôssemos para o céu, ótimo: era a suprema aspiração de cada um.

E se fôssemos para o inferno? A cadeia findava aí.

Realmente ignorávamos o que nos sucederia se fôssemos para o inferno. Mas ainda assim não convinha alarmar-nos, pois essa desgraça poderia chegar a qualquer pessoa, na Casa de Detenção ou fora dela.

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Graciliano Ramos, “Memórias do Cárcere”, Vol I, 2ª. Parte, Capítulo 5, Págs. 236/237, Ed. Record, 23ª. Edição/1987.

(*) Relativo ao Doutor Pangloss, personagem de Cândido, romance satírico de Voltaire, ou próprio dele.

P.S. O escritor Graciliano Ramos e o humorista Barão de Itararé foram dois presos políticos na ditadura de Getúlio Vargas, durante o Estado Novo, 1937-1945. Graciliano fico preso durante 10 meses, no Rio de Janeiro. O Barão de Itararé permanece por um ano e meio na prisão, tendo sido referido nas Memórias do Cárcere (1953).


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