sábado, 3 de outubro de 2020

O Falcão e o Passarinho

O Poeta e o Falcão

Por Roberto Vieira

 

Mário Quintana observa as suas malas nas ruas de Porto Alegre. O Hotel Majestic mostrou ao passarinho o olho da rua. Passarão. É a miséria chegando absoluta nesse relativo universo dos poetas. Poetas não foram feitos para a riqueza, quando muito podem conquistar uma princesa com seus versos. Depois voltam ao pântano.

Porto Alegre nunca parecera tão fria e deserta. Um vento sopra do Guaíba e encobre toda a cidade em salinas. Não olhe pra trás. Uma cidade que expulsa um poeta pode te transformar em estátua de sal. Da primeira vez que me feriram.

Mário está só. O Correio do Povo faliu. O passado faliu. As palavras faliram. Como diria o Érico, um imenso megatério se ergue na província rumo aos céus. Um império sem homens e sem sentimentos. O porteiro aproveita e sacode um agasalho que tinha ficado no quarto.

“Toma, velho!”

Mário recita ao porteiro: A poesia não se entrega a quem a define.

Mário Quintana estava só.

Cadê os passarinhos?

A sarjeta aguardava o ancião.

Cadê os passarinhos?

Paulo Roberto Falcão fora avisado do acontecido com Quintana. O Internacional cobre de vermelho os Pampas. Quando passa em frente ao Hotel Majestic, Falcão observa aquela cena absurda, patética, inglória. Tudo o que sai impresso é epitáfio. Falcão estaciona e caminha até o poeta com as malas na calçada.

Cadê os passarinhos?

“Senhor Quintana, o que está acontecendo?”

Mário ergue os olhos e enxuga uma lágrima. Ah, essas patéticas lágrimas que insistem em povoar os olhos dos poetas. Quisera não fossem lágrimas, quisera eu não fosse um poeta, quisera ouvisse os conselhos de minha mãe e fosse engenheiro, médico, professor. Mas ninguém vive de comer poesia.

“Senhor Quintana, o que está acontecendo?”

Mário lhe explica que o dinheiro acabou. Está desempregado, sem família, sem amigos, sem emprego. Restaram apenas essas malas nas ruas de Porto Alegre e esse agasalho sacudido pelo moço que trabalha na portaria.

Os passarinhos se foram no inverno de Porto Alegre. Mário observa Falcão colocando suas malas dentro do carro em silêncio. Em silêncio, Falcão abre a porta para Mário e o convida a sentar. No silêncio de duas almas na tarde fria de Porto Alegre, o carro ruma na direção do arquipélago, na direção do infinito. Ser poeta não é dizer grandes coisas.

Falcão para o carro no Hotel Royal, desce as malas, chama um dos empregados:

“O Senhor Mário agora é meu hóspede!”

“Por quanto tempo, Senhor Falcão?”

Falcão observa o olhar tímido e surpreso do poeta e enquanto o abraça comovido, responde:

“Por toda a eternidade”.

O poeta faleceu em 1994.

Todos esses que aí estão.

Atravancando meu caminho.

Ele Falcão!

Eu passarinho!

                                                       *****

                                            (Do blog Roberto)

P.S. E o Hotel Majestic, ao encerrar suas atividades hoteleiras, se tornou e recebeu o nome Casa de Cultura Mário Quintana.

Falcão recorda encontro com Mario Quintana

No dia em que são completados 26 anos da morte do poeta (5 de maio de 1994 - 5 de maio de 2020), o “Rei de Roma” elenca poemas favoritos e fala da humildade e da simplicidade do autor do “Poeminha do Contra”.

− Eu estava em Roma quando a sobrinha do Mário falou com meu irmão que ele tinha deixado outro hotel, e fizemos questão que ele ficasse hospedado conosco. Um tempo depois, eu vim para o Brasil e coincidiu dele estar no hospital, após ter se submetido a uma cirurgia na vista. Fui visitá-lo e, ali, pude ver a humildade impressionante que o Mário tinha − recorda Falcão, ao LANCE.

O ex-meia dimensionou o quanto foi marcante o encontro com Quintana. Segundo ele, o futebol não entrou em pauta.

− Diante de uma pessoa admirável como ele, você escuta mais do que fala, né?! E ele sempre humilde, fazendo piadas sobre a cirurgia. Mário é um poeta muito intuitivo, escreve com naturalidade sobre a vida − disse.

Mario Quintana se candidatou por três vezes a uma cadeira na ABL. Entretanto, não conseguiu em nenhuma delas alcançar os 20 votos necessários para se eleger. Ao ser convidado para uma quarta candidatura, o poeta recusou. Logo depois, lançou o “Poeminha do Contra”, que tem os versos:

Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
E eu passarinho.


Casa de Cultura Mário Quintana:

Em 1982, o governo do Estado comprou o prédio do então hotel Majestic e, um ano mais tarde, o prédio foi declarado como patrimônio histórico, tendo início, a partir dai, sua transformação em Casa de Cultura. No mesmo ano, através da Lei 7.803 de 8 de julho, recebeu a denominação de Mario Quintana.

A obra de transformação física do Hotel em Casa de Cultura, entre elaboração do projeto e construção, desenvolveu-se de 1987 a 1990. O projeto arquitetônico foi assinado pelos arquitetos Flávio Kiefer e Joel Gorski. Em 25 de setembro de 1990 a casa foi finalmente aberta.

Os espaços da Casa de Cultura Mario Quintana estão voltados para o cinema, a música, as artes visuais, a dança, o teatro, a literatura, a realização de oficinas e eventos ligados à cultura. Eles homenageiam grandes nomes da cultura do Estado do Rio Grande do Sul.


Antigo Hotel Majestic - hoje Casa de Cultura Mário Quintana

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