segunda-feira, 29 de março de 2021

Como são gerados os tiranos modernos

 

Teratogênese* 

Francisco Marshall**  

Foi assim gerado e cevado o mito, monstro infausto que um dia subiria ao topo da montanha e de lá assombraria a floresta. 

Era noite de magna borrasca; entre mil raios, rugiam velozes ventos, pavorosos. O uivo de lobos e acres feras afastara ninfas e deidades do bosque; em suas tocas, no oco dos carvalhos, corujas piscavam assustadas. Era prenúncio de portento mórbido, mas, por conjura dos fados, ocorreu 13 dias antes do previsto o parto inglório, em que um monstro nasceria (teratogênese); nesses casos, dão-se reveses, e tudo piorou com o passar das horas. Em torno do ser malsão ali gerado, magos malévolos celebravam com taças de fel, quando um deles tomou-o em suas garras e o ergueu aos espíritos noturnos, entre imprecações malignas. Uma gralha aturdida voou e defecou em sua boca, prenunciando a qualidade das falas que dali proviriam. Que monstro aparece nesse mito? Um tal que não cabe na literatura nem deveria caber na História, jamais. 

De sua infância pouco se sabe, pois vagava entre aldeias, sem criar raízes. Nunca apareceu professora ou amigo antigo para lembrar algo bom, nem poderia. Suspeita-se de que, a frustrações variadas, somaram-se fortes doses de rancor e ódio, que o marcaram profundamente. Ao chegar à puberdade, ingressou em escola que lhe incutiu cego desejo de poder e amor à violência e lhe impulsionou a arrogância inata. Foi assim gerado e cevado o mito, monstro infausto que um dia subiria ao topo da montanha e, de lá, com brados sempre coléricos, assombraria, uma vez mais, a floresta e ameaçaria ao mundo e aos que um dia sonharam viver com doçura. 

Como somos todos feitos de Eros e Thanatos, desejos de amar e matar, o monstro logrou tocar na parte mórbida do povo de Lisarb e provocou paixão epidêmica, assustadora. Mentiras, farsas, delitos e o poder do ódio, por vezes maior que o amor, moveram séquito cego, seitas e safados, dando glória improvável ao ser odiento. O que não poderia ser mais que caso gravíssimo de monstruosidade mítica tornou-se símbolo de uma ignorância latente, hipócrita, despudorada, e despertou o monstro íntimo de milhões de alienados. Há milênios essa ameaça é cogitada, e preparados contra ela antídotos eficientes: artes variadas, filosofia, literatura, educação, ciência, o diálogo, a democracia e tudo aquilo que anima a sensibilidade, o pensamento e o bom senso. Esses dons dissolvem o efeito letal de seres trevosos, e, por isso mesmo, o monstro perseguia tudo o que contivesse luz, saber, amor, imagens do outro, as belezas do mundo, direitos que edificam, serenidade, simpatia e empatia. Sempre bestial, ele trocava o amor que une a humanidade pelo zelo colérico com que a fera fecha-se na toca e protege a própria prole, com filé mignon surrupiado, e não perdia chance de machucar os ouvidos de todos com ignomínias sem precedentes. O prazer e o poder do monstro é ser monstro. 

Aos poucos, mais e mais vítimas do monstro perceberam o terror do transe, despertaram para se afastar do cálice de horrores que um destino doente nos impôs e foram achar caminhos para somar-se aos que resistimos, reconstruir a sociedade, semear primaveras e redescobrir o valor das verdades puras e belas da vida, em uma democracia. 

(Em Zero Hora, agosto de 2019) 

*Teratogênese − ou teratogenia − é a formação e o desenvolvimento no útero de anomalias que levam a malformações. A teratologia consiste na especificidade médica que se dedica ao estudo dessas anomalias e malformações, que ocorrem durante o desenvolvimento do embrião ou feto.  

**Francisco Marshall é licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1988) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (1996), Francisco Marshall realizou pós-doutorado na Princeton University (NJ, EUA, 1997-8), como bolsista Capes-Fulbright, convidado de Peter Brown, e na Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg (Alemanha, 2008-9), como bolsista da Fundação Alexander von Humboldt. É professor associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, atuando no Depto. e PPG História (IFCH) e no PPG Artes Visuais (IA). É Membro Correspondente da Academia Nacional de Ciências de Buenos Aires (Argentina), e Cidadão Emérito de Porto Alegre. Autor de Édipo Tirano, a tragédia do saber (UFRGS e EdUnB, 2000, Prêmio Açorianos de Literatura SMC PMPA 2001, categoria ensaios de humanidades) e de dezenas de artigos em periódicos nacionais e internacionais, Francisco Marshall tem experiência nas áreas de História Antiga, Arqueologia Clássica, Museologia, Iconologia, estudos do imaginário, História da Ciência, História, Teoria e Crítica da Arte e História da Cultura. Francisco Marshall é fundador do StudioClio e seu curador cultural, pro bono.

 


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