sábado, 24 de abril de 2021

Assalariados

 José Falero*

Pedra Bonita: condomínio da Zona Sul de Porto Alegre, onde o apartamento mais barato é 1 milhão. Ajudante de gesseiro: lá tava eu, ajudando o Michel e o Matheus. Ajudando a fazer um forro, ajudando a levar a vida. Correr atrás do ouro com os mano que tu te criou tem seu valor. Quem sabe, sabe. Nem se compara a entrar numa empresa grande e construir amizade do nada com um bando de colega desconhecido. 

Gente de bem: família tradicional, brancos que nem papel, bem alimentados, pele saudável, mãos macias, donos do mundo, donos da porra toda, donos do forro que a gente tava fazendo. O pai era rato graúdo (alto cargo da Polícia Civil). Até pediu o nosso RG e pesquisou os nossos antecedentes criminais, antes de decidir se a gente era digno de entrar no apartamento dele pra trabalhar. A esposa conseguia ser ainda mais indigesta. Reclamava da sujeira a cada 5 minutos, e a cada 10 reclamava da demora pro serviço ficar pronto. O filho era um bicho preguiça. Toda vez que eu via aquele guri, parecia que tinha recém acordado. Andava de arrasto. Acho que nunca lavou um copo na vida. E acho que nunca vai lavar. 

Uma história absurda: a mulher tava tentando conseguir alguns benefícios pro guri dela, na faculdade. Teve algumas conversas acaloradas por telefone com algum funcionário de lá. Pelo que eu entendi, o problema passava por comprovação de baixa renda. Não sei o que ela tava tentando garantir pro filhote dela, mas, pra conseguir o que ela queria, precisava comprovar, de algum jeito, que a família era pobre. E não deve ser fácil de fazer isso morando num apartamento de 1 milhão. 

Numa dessas, a mulher desligou o telefone e foi conversar com o marido, indignada. 

− Que raiva dessa gente! Esses assalariados! Amanhã eu vou lá! Vou lá conversar bem de pertinho com eles, e aí eu quero ver! Ora, onde já se viu? Esses assalariados! 

O marido concordava. 

− É. É um absurdo, mesmo. 

Eu gostaria que houvesse algum recurso gráfico que me permitisse expressar aqui, neste texto, toda a repugnância que aquela mulher colocava na voz quando dizia “assalariados”. 

− Esses assalariados! 

Ela dizia “assalariados” com a mesma careta de nojo que a gente faz pra explicar que pisou na merda. 

Até hoje a gente brinca com isso, eu e os guri. Quando um de nós faz algo reprovável, a gente diz: “tinha que ser esse assalariado!”. Mas, apesar do nosso bom humor no trato com esse tipo de coisa, a gente tem, sim, consciência do que aquele episódio representou, e também da tragédia de o mundo ser como por enquanto é. A gente sabe. A quebrada sabe. 

Vivemos tempos sombrios, e o povo parece que perdeu a capacidade de se enxergar no espelho, no meio de tanta escuridão. Parece que perdemos a capacidade de perceber as coisas mais óbvias: nossos interesses nunca serão defendidos por aqueles que não experimentaram as nossas dores. Mas eu boto fé. No momento certo, na hora que o bicho pegar, todos vão lembrar direitinho quem é que tem as mãos calejadas, e quem é que peidou dormindo a vida inteira. 

“Ei, pé-de-break, vai pensando que tá bom! Todo mundo vai ouvir, todo o mundo vai saber!” 

Em tempo: quando contei essa história a Dalva, perguntei: 

− Será que a mulher não ficou com vergonha de dizer “assalariados” daquele jeito, com aquele nojo, sendo que tinha três assalariados ali, trabalhando no apartamento dela e ouvindo tudo? Ou será que ela falou de propósito, pra nos humilhar? 

A resposta de Dalva, como sempre, não podia ser mais lúcida: 

− Não. Vocês não importavam pra ela. Eram invisíveis. Foi como se vocês não estivessem ali. 

******* 

*José Carlos da Silva Junior nasceu e vive na Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre. Adotou o pseudônimo “José Falero” em homenagem à mãe, de quem herdou a veia artística, mas não o sobrenome. É escritor, autor de Vila Sapo (Figura de Linguagem, 2019) e participante das antologias À margem da sanidade (J. Vellucy, 2018) e Ancestralidades: Escritores Negros (Venas Abiertas, 2019). Trabalha como auxiliar de gesseiro para não morrer de fome, e toca cavaquinho para não morrer de tristeza.

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